Retirada das tropas dos Estados Unidos representa volta da ameaça do Talibã no Afeganistão
Com o fim da intervenção norte-americana, o país deve ficar em uma situação instável, com grandes chances de aumento na dependência econômica do ópio e na repressão das mulheres
Os Estados Unidos decidiram acelerar a retirada de suas tropas do Afeganistão. Inicialmente, o presidente Joe Biden determinou que a saída deveria ocorrer até 11 de setembro, exatamente no 20° aniversário dos atentados terroristas que deram início ao conflito. Agora, o governo norte-americano e seus aliados da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) pretendem deixar completamente a República Islâmica em julho, bem antes do prazo estipulado pelo democrata. A antecipação aumentou os temores de que o Talibã dê início a uma nova guerra civil e retome o controle do Afeganistão assim que os soldados estrangeiros partirem. Principalmente porque o movimento fundamentalista islâmico já vem realizando ataques contra afegãos que trabalharam ao lado dos Estados Unidos e da OTAN durante o conflito. No início do mês, por exemplo, sete soldados foram mortos e um foi capturado depois que o Talibã explodiu um posto militar na província de Farah. Mesmo diante da escalada de violência, a Casa Branca continua defendendo a retirada das tropas sob a garantia de que continuará ajudando o governo afegão à distância, apesar de não esclarecer como isso será feito. Por enquanto, o único assunto que está sendo debatido é a possibilidade de evacuar e conceder vistos aos milhares de afegãos que trabalharam para o governo norte-americano e que, por isso, podem ser alvo do Talibã em breve. O especialista Paulo Gabriel Hilu, que é coordenador do Núcleo de Estudos do Oriente Médio (NEOM) da Universidade Federal Fluminense, afirma que a estabilidade na região já está comprometida. “A consequência óbvia da retirada das tropas é uma intensificação nas tentativas de derrubar o governo e um aumento da violência. Diversos grupos vão tentar ocupar o vazio de poder. As autoridades do Afeganistão sabem que sua sobrevivência dependia da presença dos Estados Unidos. Agora, elas terão que lutar contra o Talibã, com nenhuma chance de derrotá-lo, ou então tentar negociar com o grupo”, explica.
A instabilidade comprova que a guerra de quase 20 anos de duração, a mais longa protagonizada pelos Estados Unidos, não teve vitória de nenhum dos lados. O governo de George W. Bush invadiu o Afeganistão cerca de um mês depois dos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001. Logo no primeiro ano, os norte-americanos conseguiram destituir o Talibã, que estava controlando o país desde 1996, e colocar Hamid Karzai como presidente de um governo interino. Em 2011, uma operação militar durante o mandato de Barack Obama encontrou e matou o terrorista Osama bin Laden, líder da Al Qaeda, que estava em um esconderijo no Paquistão. Porém, os dois principais movimentos fundamentalistas islâmicos da região resistiram às forças da OTAN e não foram totalmente extintos. “A invasão do Afeganistão começou com a ideia de derrubar o regime do Talibã e desmantelar a rede da Al Qaeda, mas passados 19 anos, os Estados Unidos não conseguiram atingir nenhum dos objetivos. Embora não tenha a mesma força no jihadismo internacional, a Al Qaeda continua sendo um nome relevante. Já o Talibã vem se organizando como uma guerrilha contra a presença norte-americana, mas quando as tropas se retirarem, eles vão centralizar seus ataques contra o governo afegão”, afirma Hilu. O conflito pode ter, na verdade, agravado a questão do terrorismo no mundo. De acordo com um relatório do Pentágono publicado em 2017, o número de grupos terroristas internacionais presentes no Afeganistão e no Paquistão subiu de 4 para pelo menos 20 desde o início da intervenção norte-americana. Nesse mesmo período, a Al Qaeda passou de 400 para dezenas de milhares de membros em todo o mundo, além de ter gerado ramificações como o próprio Estado Islâmico. Isso porque esses movimentos são motivados principalmente pelo oposição à presença estrangeira.
O conflito também foi muito caro para os países envolvidos. Em setembro de 2019, o Pentágono divulgou que o custo das operações militares no país tinha chegado a US$ 776 milhões. Ainda maiores foram as perdas humanas. De acordo com o iCasualties, site independente que rastreia e contabiliza as vítimas da guerra do Afeganistão, pelo menos 3.577 soldados estrangeiros perderam a vida, sendo que 2.452 eram norte-americanos. O número de perdas entre os membros das Forças Armadas do Afeganistão é desconhecido porque as baixas não são divulgadas pelo governo. Entre os civis, porém, as mortes giram em torno de 32 mil a 60 mil, segundo estimativas da Organização das Nações Unidas (ONU). Além disso, o governo norte-americano deixa para um trás um país em ruínas, onde quase metade da população vive abaixo da linha da pobreza e a economia é altamente dependente do ópio, substância extraída da papoula que é processada quimicamente para produzir heroína. Os dados do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes indicam que mais terras são usadas para o cultivo da papoula no Afeganistão do que para o cultivo de coca na América Latina. “Não acho que a presença dos Estados Unidos inibia de alguma forma o comércio do ópio, mas agora efetivamente não haverá limite algum para essa atividade. O Talibã sempre se beneficiou dessa produção, que foi uma grande financiadora da guerra civil no Afeganistão”, explica Paulo Gabriel Hilu. O especialista defende que as questões da sociedade afegã, incluindo o desenvolvimento de uma economia para além do tráfico de drogas, nunca foram prioridades para os Estados Unidos. “Tudo isso faz com que as supostas conquistas pós-Talibã sejam muito frágeis e não atinjam a população como um todo”, diz.
Um dos maiores exemplos disso é a opressão de gênero no Afeganistão. As imagens de mulheres cobertas da cabeça ao pés com burcas foram utilizadas pelos Estados Unidos como uma das justificativas para depor o regime do Talibã. De fato, uma das primeiras atitudes do movimento fundamentalista islâmico foi implementar a sua visão da religião e da sharia, proveniente das províncias mais conservadoras e menos escolarizadas do Afeganistão, que incluía uma repressão especial às pessoas do sexo feminino. Do dia para a noite, as mulheres foram obrigadas a cobrir todas as partes do corpo, incluindo os olhos, e a permanecer confinadas dentro do ambiente doméstico. A repentina proibição de frequentar a escola ou trabalhar fora causou um verdadeiro caos social, já que até então um quarto dos serviços da capital Cabul dependia delas. As mulheres deixaram de receber qualquer atendimento de saúde, já que não podiam ser médicas e nem ser tratadas por profissionais homens, e as famílias que não tinham nenhum parente adulto do sexo masculino se viram obrigadas a mendigar para sobreviver. A violação de qualquer lei era passível de espancamento, apedrejamento ou até execução em praça pública. “Com a chegada das tropas dos Estados Unidos e o fim do regime do Talibã, a situação das mulheres melhorou enormemente, mas em Cabul. No interior, o cenário é o mesmo”, ressalta Hilu. De acordo com a Global Rights, ONG que promove os direitos humanos, cerca de 90% das mulheres afegãs ainda sofrem abusos físicos, psicológicos e sexuais. Os casamentos forçados continuam sendo uma prática comum, assim como os testes de virgindade que os antecedem. A tendência é que a situação se agrave com a saída dos militares estrangeiros, independente do Talibã retomar o governo ou não. O grupo já deixou suas intenções claras no início de maio, ao bombardear uma escola secundária feminina em Cabul. Das cerca de 90 pessoas que morreram no ataque, a maioria eram meninas adolescentes – que junto com as mulheres adultas, crianças e demais civis fazem parte das principais vítimas dos últimos 20 anos de conflito e, certamente, da instabilidade que se seguirá.
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