Rússia cessou a rebelião, mas atrito com Grupo Wagner é só o começo de uma crise
Facilidade com que os mercenários marcharam rumo a Moscou é um sinal de apoio popular a uma oposição que, inclusive, poderia usar a força contra o governo Putin
Apesar de ter conseguido cessar a rebelião e evitar que o Grupo Wagner chegasse até a capital, a crise envolvendo Rússia e os paramilitares não é algo encerrado e, a longo prazo, deve voltar. Nesta quinta-feira, 29, o chanceler alemão, Olaf Scholz, falou exatamente sobre isso. A rebelião do grupo “terá consequências para a Rússia no longo prazo”, disse ao canal público ARD. “A Rússia é uma potência nuclear, é um país muito poderoso. Por isso, devemos sempre estar atentos a situações perigosas e esta foi uma situação perigosa”, afirmou o líder alemão, que acredita que Vladimir Putin, presidente russo, saiu enfraquecido do motim. A rebelião registrada no final de junho é o maior desafio que Putin, que chamou este ato de “traição”, enfrentou desde que chegou ao poder, em 1999. Os especialistas ouvidos pela Jovem Pan também defendem o ponto de vista do chanceler alemão. Por mais que a situação esteja mais calma, ela deve voltar no futuro. Eles pontuam que a rebelião mostrou a proliferação de grupos insurgentes na Rússia.
“A relação do Estado russo com esse grupo ficou balançada. Na minha visão, depois que a poeira baixar, se a guerra na Ucrânia tiver um fim, a Rússia vai retomar as suas tentativas de controlá-los e limitar sua influência. E aí a gente pode, talvez, esperar uma nova crise no setor”, fala Valdir da Silva Bezerra, mestre em relações internacionais pela Universidade Estatal de São Petersburgo. Ele mora na Rússia há seis anos e contou que a rebelião contra Moscou pegou todos de surpresa, mas que as coisas já estavam se normalizando após o acordo firmado. “O Ministério da Defesa da Rússia teve um susto no sábado. Então, acho que eles aprenderam a lição, mas não vão lidar com essa situação agora. Neste momento, vai ser muito difícil lidar com essa situação”, acrescenta. O atrito do Grupo Wagner não era diretamente com Putin. Yevgeny Prigozhin, líder paramilitar, deixou isso claro. Há tempos ele batia de frente com o ministro da Defesa, Sergei Shoigu, e declarou que o intuito da marcha não era derrubar Putin, e sim evitar o fim do seu grupo.
Para Bezerra, o Grupo Wagner deve voltar a se rebelar contra Moscou “se novos movimentos de controle da sua condição de empresarialidade privada forem executados no futuro”. A intenção do Ministério da Defesa da Rússia de controlar os mercenários veio a público no dia 10 de junho, quando Shoigu deu uma ordem, com prazo de validade para dia 1º de julho, para que fosse estabelecido um procedimento para organizar as atividades de rotina dos grupos voluntários, ou seja, ele queria ter controle sobre os paramilitares. Na segunda-feira, 25, Putin sugeriu que os mercenários do Wagner se alistassem nas Forças Armadas do país, mas disse que manteria a promessa de aceitar que eles se exilassem em Belarus. Na quinta-feira, 29, a agência de notícias russa TASS falou que o Grupo Wagner não vai mais participar do conflito na Ucrânia.
Segundo a agência, citando o presidente do Comitê de Defesa da Duma Estatal, Andrey Kartapolo, a decisão de retirá-los da guerra teria sido tomada porque Prigozhin não teria concordado em assinar o acordo. “Em outras palavras, não haverá mais financiamento ou suprimentos”, disse o presidente do comitê, acrescentando que todos os mercenários estavam obedecendo à ordem, com exceção de Prigozhin. Mais do que a revolta dos mercenários, Vitelio Brustolin, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisador de Harvard, fala que a Rússia também precisa ficar atenta à proliferação de outros grupos insurgentes. “O Prigozhin, em Rostov-on-Don, onde fica o comando militar do sul da Rússia, foi aplaudido pela população civil, fotografado e cumprimentado pelas pessoas, o que representa um sinal de que existe dentro da Rússia apoio popular para movimentos declaradamente insurgentes como o que o Prigozhin promoveu com o grupo Wagner.” “Isso é um sinal de apoio popular a uma oposição que, inclusive, poderia usar a força contra o governo.”
Para ele, esse motim e o fato de os mercenários terem conseguido tomar um importante comando militar e marchar até a 200 quilômetros de Moscou – a distância de Rostov-on-Don até a capital são 1.100 quilômetros – mostram que parte da população apoiaria um movimento insurgente. “Nós percebemos isso não apenas por essa ofensiva do Grupo Wagner, mas também por outros grupos insurgentes que têm feito ataques em Belgorod, e que têm se manifestado publicamente”, fala o pesquisador, citando o Legião Liberdade para a Rússia e o Corpo de Voluntários Russos. “Legião Liberdade para a Rússia tem inclusive um porta-voz, o Oleksei Baranovski, que aparece na televisão ucraniana, que aparece nos meios alternativos, nas mídias, falando contra o governo russo”, lembra Brustolin. “Então, aparentemente, existem sim movimentos insurgentes dentro da Rússia que poderiam apoiar, inclusive, uma dissidência armada no país.”
O pesquisador também lembra que, há algumas semanas, foram derrubados dois caças e dois helicópteros em território russo num ataque de solo para o ar, com armas de infantaria que têm um alcance de cinco quilômetros. Esses caças tinham levantado voo para disparar mísseis contra a Ucrânia, e foram alvejados do solo provavelmente por mísseis Stinger. Esse episódio faz com que exitam duas possibilidades. “Ou são grupos insurgentes dentro da Rússia contra a Rússia, contra o governo central russo, ou são forças de sabotagem ucranianas infiltradas em território russo, o que é improvável, porque teriam que ultrapassar um longo caminho para chegar até onde agiram.”
Brustolin também cita os ataques com drones contra o Kremlin que geraram revolta em Prigozhin. “Bestas nojentas, o que vocês estão fazendo? Levantem seus traseiros dos escritórios onde se sentaram para proteger este país. Vocês são o Ministério da Defesa. Por que diabos permitem que esses drones cheguem a Moscou?”, disparou o chefe do grupo de mercenários que, na época, disse estar profundamente indignado com a situação e chegou a falar do atraso da Rússia em relação ao desenvolvimento de drones. “Seria muito improvável que drones fossem lançados da Ucrânia e passassem por toda essa extensão de território russo sem serem detectados, mesmo que voando muito baixo para tentar evitar os radares, porque a defesa antiaérea russa é reconhecidamente uma das melhores do mundo.”
Comentários
Conteúdo para assinantes. Assine JP Premium.