Saiba qual o risco de um bombardeio russo em uma usina nuclear da Ucrânia

Chernobyl ainda é um trauma, mas, de acordo com especialistas, catástrofe semelhante a uma bomba atômica jamais ocorrerá nessas estruturas, nem mesmo sob ataque das tropas de Putin

  • Por Pedro Jordão
  • 20/03/2022 08h00 - Atualizado em 20/03/2022 14h16
Imagem de satélite ©2022 Maxar Technologies/AFP Usina Nuclear de Chernobyl Usina nuclear de Chernobyl sofreu grande vazamento radioativo em 1986

Diante do conflito no Leste Europeu, iniciado pela invasão do território da Ucrânia pelas topas militares da Rússia no dia 24 de fevereiro, uma questão que frequentemente vem recebendo destaque na imprensa internacional é o medo em relação aos possíveis riscos de acidentes nucleares no país, já que os ucranianos possuem várias usinas em atividade, além da de Chernobyl, onde ocorreu uma tragédia em 1986, lembrada até hoje. Questionados pela Jovem Pan, especialistas em engenharia nuclear descartaram a possibilidade de haver grandes explosões na Europa, como as de uma bomba atômica, por causa de algum bombardeio a uma usina nuclear, mas alertaram para riscos de acidentes químicos, com vazamento de substância radioativas para a atmosfera, podendo afetar grandes territórios do continente europeu.

“O reator nuclear [de uma usina] não explode. Para explodir é preciso ter uma bomba atômica. A bomba atômica trabalha com o enriquecimento de urânio acima de 80%. Na usina nuclear, não passa de 5%. Então, o material radioativo que está no núcleo de um reator nuclear de usina tem no máximo 5% de urânio 235, que é o urânio radioativo e que vai gerar risco de contaminação. Não existe o risco de explosão como uma bomba atômica, isso é simplesmente impossível em termos de física nuclear. Existe o risco de explosão como qualquer bomba pode explodir, uma bomba convencional. Essa explosão pode danificar o prédio do reator e liberar radioatividade”, explica Gerardo Portela, que é engenheiro e operador nuclear pelo Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares de São Paulo (Ipen-SP) e doutor em riscos e segurança pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Segundo a agência independente de notícias nucleares Nucnet, a Ucrânia tem 15 reatores comerciais de energia nuclear em atividade distribuídos em quatro instalações. Dentre elas, a maior usina nuclear de toda a Europa, que é a unidade de Zaporizhia, que fica no sul do país, próximo à Crimeia, ao Mar Negro e à cidade sitiada de Mariupol, uma das mais atacadas pelos russos até o momento. Ainda de acordo com a agência, o conjunto da estrutura é responsável pela produção de 51% da energia da Ucrânia.

Se bombas atingirem as estruturas de uma dessas usinas nucleares, os riscos podem ser minimizados caso o ataque não ultrapasse as barreiras de contenção, que são estruturas feitas para evitar acidentes. “A primeira coisa que se tem nessas usinas é uma contenção, um prédio em concreto com parede de mais ou menos 1 metro de espessura. Nessa contenção, existe ainda um revestimento de 5 ou mais centímetros de aço, que dá uma proteção adicional ao concreto. Além disso, há outras construções em concreto, a própria estrutura em aço do vaso de pressão do reator, o revestimento das barras de combustível. Tudo isso são barreiras que impedem a contaminação e a fuga de material radioativo. Uma usina como essas geralmente é projetada para resistir ao impacto de um boeing de muitas toneladas totalmente carregado com combustível, além de outras coisas como terremotos etc. Há um grau de segurança muito elevado”, explica o professor professor de engenharia nuclear da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Carlos Brayner.

Caso bombardeios intencionais e constantes afetem a estrutura de segurança, o risco envolvido é de vazamento de sustâncias radioativas para a atmosfera com impactos imprevisíveis para a Ucrânia, a Rússia e até mesmo toda a Europa. “Pode liberar vapores ou gases radioativos, líquidos radioativos ou material radioativo sólido. Qualquer um desses três é altamente danoso porque a meia vida desses produtos cai à metade depois de períodos muito longos, de 45 mil anos, até mais. Existem produtos de meia vida de milhões de anos. É preciso milhares de anos para poder cair a radioatividade até a metade e, depois, mais milhares de anos para cair novamente até metade. É praticamente uma poluição definitiva. E tem dois tipos de situações [de risco] quando se libera radioatividade de uma usina nuclear: radiação, que é de essa radioatividade passar pelos locais e pelas pessoas, e o de contaminação, que é tornar o local uma fonte de radioatividade”, afirma Portela.

O doutor em riscos e segurança pela UFRJ afirma ainda que o impacto desse cenário de vazamento deve depender da dose radioativa lançada na atmosfera. “É possível gerar uma dose radioativa letal. Quando alguém vai ao dentista, toma uma dose bem pequena de radioatividade. Mas, ao tomar uma dose letal, a pessoa pode morrer em poucas horas. Ou, em alguns casos, desenvolver um câncer. Existe também a contaminação, que é quando uma superfície se torna radioativa pelo contato com a substância.”

O caso de Chernobyl

Um outra situação que desperta medo diante dos bombardeios constantes na Ucrânia são os riscos relacionados à usina nuclear de Chernobyl, onde já houve um grande vazamento radioativo no passado. Segundo o professor Carlos Brayner, a tragédia de 1986 ocorreu porque a estrutura física da usina não era resistente o suficiente e, por isso, o risco no território hoje também seria mais elevado. A Rússia passou a controlar a unidade central de Chernobyl, enquanto a Ucrânia mantém o controle de estruturas menores e paralelas. Ambos os países se acusam mutuamente de planejar ataques na região para incriminar o outro lado de realizar uma guerra química, além do objetivo de tentar influenciar a opinião pública.

“Mesmo com a usina inativa, não é uma boa ideia bombardeá-la, principalmente quando se é um país vizinho. Se houver uma exposição de material radioativo para a atmosfera, não há como controlar para onde vai a nuvem radioativa, depende da climatologia. E pode inclusive voltar para quem detonou a usina. O que nós temos ouvido falar é que, por causa da batalha em torno da usina e em suas proximidades, tem havido problemas que afetam o funcionamento como um todo, como a falta da rede elétrica, que afeta a proteção do local”, pontua Brayner. Ele ainda lembrou que, até o momento, a Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA) afirma que não existem riscos evidentes a Chernobyl relacionados a essa falta de energia, já resolvida, ou à guerra.

“O risco em Chernobyl é dividido. Por um aspecto ele é menor, porque as usinas não estão em operação, então os reatores não estão quentes. O que a gente tem lá é, naquele reator que sofreu o acidente nos anos 1980, ele foi completamente destruído e, por causa disso, foi construído um sarcófago [para isolar as substâncias] em volta dele. Ele tem material radioativo numa condição desastrosa devido ao acidente. Se esse sarcófago permanecer íntegro, tudo bem, mas, se ele for destruído por guerra ou um ato intencional, vai liberar aquela radioatividade de novo para o local. Foi uma obra muito cara, que só ficou pronta em 2016, com uma dificuldade enorme, com rodízio de empregados, porque a taxa de radioatividade é muito alta. Perder isso, será necessário refazer tudo de novo para poder utilizar aquela região. Não faz o menor sentido a Rússia ter o interesse de gerar um acidente nuclear, seja em Chernobyl ou em qualquer outra usina, porque ela criaria automaticamente um território inabitável. E não teria sentido conquistar um território e não poder utilizá-lo”, argumenta Gerardo Portela.

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