“Temi pela vida em todos os dias do genocídio”, diz herói do “Hotel Ruanda”

  • Por Agencia EFE
  • 04/04/2014 19h44

Pedro Alonso.

Nairóbi, 4 abr (EFE).- Passados 20 anos desde o genocídio em Ruanda, Paul Rusesabagina, que ficou conhecido por salvar mais de 1.200 pessoas do massacre coletivo e inspirou o filme “Hotel Ruanda” (2004), admitiu à Agência Efe que temeu por sua vida “todos os dias”.

Aproximadamente 800 mil pessoas, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), foram assassinadas no genocídio de 1994, a maioria da etnia tutsi, atacada por seus vizinhos extremistas hutus, que usaram o facão como principal arma de extermínio.

Nos quase três meses desse banho de sangue, Rusesabagina, de 59 anos, trabalhou como gerente do Hotel des Milles Collines, em Kigali, onde se refugiaram 1.268 pessoas que livrou da morte graças ao “poder das palavras”, segundo confessou à Efe em entrevista feita a partir de um questionário enviado por escrito.

Opositor do polêmico presidente de Ruanda, Paul Kagame, Rusesabagina – um hutu casado com uma tutsi – hoje em dia vive exilado entre a Bélgica e os Estados Unidos, onde criou uma fundação que promove a reconciliação para evitar futuros genocídios.

O ex-gerente do hotel, encarnado no filme pelo ator americano Don Cheadle, lamenta não poder assistir na próxima segunda-feira na capital ruandesa ao ato oficial pelos 20 anos do massacre, presidido por Kagame.

None

Pergunta: Por que o senhor não comparecerá aos atos oficiais do genocídio?

Resposta: Em primeiro lugar, não me convidaram. O presidente Kagame não gosta nada de falar de crimes contra a humanidade e violações de direitos humanos realizados pelo atual governo ruandês. Acho que se fosse a Ruanda agora, nunca me permitiriam sair vivo de lá.

None

P: Como líder tutsi, Kagame comandou a força rebelde que pôs fim ao genocídio. Por que o senhor o critica tanto?

R: Quando Paul Kagame e a Frente Patriótica Ruandesa chegaram ao poder, eu apoiei. Permiti dar uma entrevista coletiva no meu hotel. Pensamos que seria um libertador, um novo estilo de líder democrático. Com o passar do tempo, senti frustração ao comprovar que o governo de Kagame foi se tornando menos democrático a cada ano. Não há nem poder compartilhado nem espaço político. Os jornalistas e os ativistas pró-direitos humanos são presos e assassinados. Ele se transformou em um ditador milionário a quem só importa sua própria fortuna, não os ruandeses.

None

P: Teve oportunidade de dialogar com o presidente?

R. Falei com o presidente Kagame. Me surpreende que se interesse por mim. Por que um presidente deve se importar com o que pensa um homem comum? Apesar de tudo, ele paga pessoas para me seguirem e interromperem minhas palestras. Paga pessoas para escreverem livros me atacando. Me espanta que haja assim.

None

P: Duas décadas depois do genocídio, qual a sua opinião sobre o chamado “Processo de Justiça e Reconciliação” em Ruanda?

R: Não é um processo de reconciliação verdadeiro e imparcial. Está controlado pelo governo, não pelo povo ruandês. Por isso, a Fundação Hotel Ruanda Rusesabagina defende um Processo da Verdade e a Reconciliação aprovado internacionalmente que possa levar todos os ruandeses a uma mesa de diálogo para falar do genocídio, reconciliar-se e praticar uma justiça equitativa, não a justiça dos vencedores.

None

P: O mundo fez vista grossa perante a barbaridade cometida em Ruanda. A comunidade internacional aprendeu alguma lição desse horror?

R: Quem me dera pudesse dizer que sim, mas a comunidade internacional, frequentemente, perde tempo demais. Em vez de usar as palavras e a diplomacia no começo de uma situação, esperam até que as palavras abram passagem às armas.

None

P: O senhor salvou mais de 1.200 vidas no Hotel Des Milles Collines e muitos o consideram um herói. O senhor se sente assim? Que lembrança guarda daqueles dias terríveis?

R: Não me vejo como um herói. Não sou mais que um homem comum que escutou a sua consciência. As minhas lembranças são as que tentamos sobreviver dia a dia. Não sabíamos quanto tempo ia durar o genocídio. Queria manter vivos minha família e as pessoas que buscaram refúgio no hotel. Me orgulha que o Hotel Des Milles Collines tenha sido o único lugar público de Ruanda no qual ninguém morreu ou ficou ferido durante o genocídio.

None

P: Como fez para conseguir impedir que os soldados e as milícias hutus entrassem no hotel durante quase 100 dias de massacre?

R: Utilizei o poder da palavra. Negociei com eles. Falava do que precisavam e queriam. Tentava oferecer algo que os deixasse satisfeitos, a fim de que permanecessem fora do hotel.

None

P: Desde então, retornou ao hotel?

R: O visitei muitas vezes. A última vez que estive lá foi em agosto de 2004, antes da estreia do filme “Hotel Ruanda”. De vez em quando, me reúno com algumas das pessoas que me acompanharam no hotel durante o genocídio, mas não faço isso, normalmente, em Ruanda.

None

P: No final, o senhor e sua família sobreviveram naquela loucura coletiva, da mesma forma que o resto de refugiados no hotel. No entanto, chegou a temer por sua própria vida em algum momento?

R: Me sinto orgulhoso de poder dizer que todas pessoas que protegi no hotel sobreviveram. Temi pela minha vida em todos os dias do genocídio. Minha esposa e meus seis filhos sobreviveram felizmente. Duas das minhas filhas são duas sobrinhas que estavam no hotel. As adotamos quando seus pais foram assassinados durante o genocídio.

None

P: Sua história inspirou o filme “Hotel Ruanda”. O filme reproduz fielmente sua experiência? O senhor se reconhece nele?

R: Acho que o filme constitui uma boa narração de um pequeno fragmento (do genocídio). O filme relata os fatos, mas com certo sabor de Hollywood. Na vida real, houve muito mais violência. Don Cheadle trabalhou muito duro para saber sobre mim. Ele aprendeu até os meus gestos feios.

None

P: O senhor se dedica hoje em dia a viajar e fazer conferências sobre direitos humanos. O que diz nas suas palestras?

R: Falo sobre os problemas no Congo, os abusos de direitos humanos em Ruanda e a necessidade de diálogo entre todos os ruandeses. Falo sobre o genocídio quase diariamente, de modo que “nunca, jamais” possa significar “nunca, jamais”. EFE

pa/cdr-rsd

Comentários

Conteúdo para assinantes. Assine JP Premium.