Um porta-retratos finalmente encontra a foto que a ditadura quis apagar
Natalia Kidd.
Buenos Aires, 5 ago (EFE).- “O porta-retratos vazio vai ter sua imagem”, assim se expressou Estela de Carlotto, presidente das Avós da Praça de Maio da Argentina, após a aparição de seu neto, nascido em cativeiro durante a última ditadura, cujo plano sistemático de roubo de bebês buscou apagar todo o rastro de seus adversários.
Guido Carlotto, nascido há 36 anos e que hoje se inteirou de qual é sua verdadeira identidade, é o rosto concreto, o protagonista de um drama pessoal, irmanado a milhares de vítimas do sangrento regime militar que governou o país entre 1976 e 1983.
Sua mãe, Laura Carlotto, e seu até hoje desconhecido pai, Oscar Montoya, eram dois jovens militantes políticos peronistas, alvo do aparato militar que se propôs a “aniquilar” os “subversivos”.
Sua avó materna, Estela, de 83 anos, dedicou grande parte de sua vida a procurá-lo e, nessa cruzada, ajudou a encontrar antes outros 113 filhos de desaparecidos.
Seus tios, irmãos de Laura, são ativistas pelos direitos humanos, integrantes de uma família cujo sobrenome é sinônimo da luta pela verdade e pela justiça.
Guido, que foi criado com o nome de Ignacio Hurban, vive na cidade de Olavarría, na província de Buenos Aires, e há muito tempo suspeitava de sua verdadeira identidade.
É músico e inacreditavelmente – ou nem tanto – há dois anos participou do ciclo “Música pela identidade”, que as Avós da Praça de Maio organizaram para divulgar sua causa humanitária.
Sua avó ainda não pôde lhe dar esse abraço tão ansiado, mas hoje viu pela primeira vez sua foto e, emocionada, reconheceu a semelhança física.
No mês passado o próprio Guido se aproximou das Avós da Praça de Maio e da Comissão Nacional pelo Direito à Identidade, dirigida por Claudia Carlotto, sua tia, para fazer testes genéticos, cujos resultados apontaram hoje que ele tem 99,9% de chances de ser integrante da família.
“A história completa não sabemos ainda. Temos muita informação, mas vamos ser cautelosos”, disse hoje Estela de Carlotto.
Laura foi sequestrada pelos militares em novembro de 1977 e foi levada ao centro clandestino de detenção de “La Cacha”, em sua cidade natal, La Plata, 60 quilômetros ao sul de Buenos Aires.
Sua família desconhecia que, no momento que foi capturada, estava grávida de poucos meses.
“Eu não sábia que Laura, quando foi sequestrada, estava esperando um bebê. Eu procurei por ela a princípio, sem saber. Mas houve uma libertada que teve a coragem de nos dizer que estava grávida de seis meses e iria pôr no bebê o nome de seu pai, Guido”, contou Estela.
Ao saber deste “detalhe”, Estela se encheu de esperanças, pensou que os militares não matariam uma mãe.
“Como iriam matá-la? Como essa criança não viria para os meus braços? O que sabíamos as Avós então da crueldade destes genocidas, que até se apropriariam destes bebes indefesos?”, refletiu hoje.
Por diferentes testemunhos judiciais se sabe que a criança nasceu em 26 de junho de 1978, após o que sua mãe foi assassinada e seu corpo foi entregue a sua família em agosto daquele ano.
“Meu neto nasceu, seguramente, no mesmo lugar onde esteve Laura. Há outras versões. Depois virá a história verdadeira. Sabemos quem o entregou, sabemos quem o criou, talvez inocentemente”, disse hoje Estela, que não quis revelar mais detalhes por respeito a seu neto – uma das quase 500 crianças roubadas pela ditadura -, que agora deve processar a notícia.
Mas a foto de Guido não só está a partir de hoje no porta-retratos vazio que Estela conservava como recordação de sua cruzada. As análises genéticas também permitiram descobrir quem foi seu pai e outra família, além da de Carlotto, recuperou hoje um neto.
Os irmãos de Laura nunca souberam com toda certeza quem era o namorado de sua irmã.
Por meio de investigações, chegaram ao indício que poderia ter sido Oscar Montoya, um militante da guerrilha Montoneros, que fugiu de sua cidade natal, Caleta Olivia, no sul do país, para La Plata, e ali conheceu a Laura. Ambos foram sequestrado juntos e Oscar permanece desaparecido.
Os Carlotto solicitaram há tempos à família Montoya que dessem amostras de sangue ao Banco Nacional de Dados Genéticos para que, no caso de encontrar Guido, pudessem realizar os teste de DNA, que finalmente deram positivo.
“Tenho um neto!”, exclamou sua avó paterna, de 91 anos, ao saber hoje da descoberta que emocionou a sociedade argentina. EFE
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