Ainda que a versão mais absurda da anistia fosse aprovada, ela não prosperaria
Não há a menor chance de prosperar um texto que, sob o pretexto de anistiar o caixa dois, também livre os políticos de outros crimes.
– Os políticos que insistem em votar algo parecido investem na crise.
– Os procuradores que fingem que isso é possível investem na crise.
– Os juízes que atacam a proposta como se ela fosse viável investem na crise.
Vamos ver. Os ilustres deputados estão pensando em alguma maneira de livrar a própria cara? Estão. Isso quer dizer que a coisa tenha viabilidade jurídica? Não.
Fiquemos com a redação mais ampla e mais absurda que circulou até agora. Um texto apócrifo traz a seguinte redação:
“Não será punível nas esferas penal, civil (SIC) e eleitoral, doação contabilizada, não contabilizada ou não declarada, omitida ou ocultada de bens, valores ou serviços, para financiamento de atividade político-partidária ou eleitoral realizada até a data da publicação desta lei”.
Bem, nesse caso, já nem se cuida mais de caixa dois, como se vê. Aí também estaria o caixa um. Quem sabe ler percebe que um texto com essas características, se não fosse barrado pelo Supremo (e seria), estaria apenas livrando o eventual acusado do crime de lavagem de dinheiro e de falsidade ideológica (referência ao Artigo 350 do Código Eleitoral).
Rodrigo Janot, Deltan Dallagnol, Sérgio Moro, Carlos Fernando dos Santos Lima, os deputados todos e os juridicamente alfabetizados sabem que mesmo um texto absurdo e amplo como esse não livraria a pessoa de ser acusada de corrupção ativa, corrupção passiva, peculato, organização criminosa e por aí afora.
Isso se o texto prosperasse, o que eu duvido.
Mas vou além. Digamos que essa estrovenga fosse considerada constitucional. Se a Força-Tarefa, por exemplo, chegar à conclusão de que houve lavagem de dinheiro — um crime tipificado — e se apresentasse as provas, alguém acha a sério que esse texto seria capaz de livrar o acusado dessa imputação?
É muito comum a expressão “diálogo de surdos” para designar uma conversa em que as pessoas não se entendem; em que cada uma retoma a palavra a partir de onde parou, ignorando o que o outro disse.
A anistia ao caixa dois — ou aos “outros crimes” — é algo um pouco diferente. Trata-se de uma briga de surdos, em que cada um retoma os insultos ao outro do ponto em que parou. Nem resta tempo para, sei lá, ouvir as ofensas novas disparadas pelos oponentes.
O que se tem aí resulta do embate de uma força que se hipertrofiou, e isso é inegável — o Ministério Público —, e de outra que se sente acuada: o Congresso Nacional.
Numa democracia com funcionamento regular, Ministério Público e juízes deixariam que o Congresso exercesse a sua atribuição — e os grupos que defendem a moralidade na política estão vigilantes, como se vê —, e se recorreria às instâncias adequadas caso houvesse uma violação ou uma tentativa flagrante de violar os fundamentos do estado democrático e de direito.
Mas não! Todos decidem agir preventivamente. Quando um procurador, como Carlos Fernando, diz que chegou a hora de usar “luva de boxe” contra o Congresso, é claro que não está preocupado com a harmonia entre os Poderes nem está exercendo uma prerrogativa do Ministério Público. Quando deputados decidem legislar apenas para deixar claro que o MPF não manda, também estão agindo de maneira nefasta.
Até agora, políticos, procuradores e juízes estão empenhados em apagar incêndio com gasolina.
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