Para Juvenal, meu tio

Que seja esta a mensagem póstuma jamais dada a meu tio e que ela possa ressuscitar em alguém o gosto permanente pela vida, porque a morte é uma ilusão para quem ama e age permanentemente em nome deste amor

  • Por Adrilles Jorge
  • 26/12/2020 14h24
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WERTHER SANTANA/ESTADÃO CONTEÚDO Cemitério Uma morte de alguém próximo, próxima ao Natal, ensina a viver pelo zelo de cada ação que criamos em vida a quem amamos

Foi um ano de morte este. Não pelas mortes cotidianas que fazem parte da vida. Mas um ano de morte que revelou um medo paralisante de medo da morte. Ninguém sai, avisavam as autoridades: a morte está lá fora. Esqueceram de avisar que a vida também está lá fora. Fora de nós, fora de nosso ego. A vida está no cuidado que temos pelo outro. Medo de morrer é medo de viver. Mata antes da morte definitiva. A morte rondou minha família agora próximo ao Natal. Perdi um tio que foi um pilar para todos nós. Família numerosa de mulheres, que viveu unida por anos. O único homem, filho mais velho, era a figura paterna e mantenedora de todos nós por mais de uma década. Foi um pai pra mim.

Minha identificação com meu tio era quase nenhuma. Nas ideias, nos gostos, no comportamento. O amor só é ciência exata e transborda no óbvio em dramaturgia cafona ou vida encenada, em amor encenado. O que nos unia era um afeto tímido, acabrunhado que quase nunca ousava se expressar. No entanto, minha admiração por ele, por sua responsabilidade e sacrifício de toda uma vida pelos que o cercavam, era irrestrita. Disse isto a ele apenas uma vez . Queria tê-lo dito uma vez mais, agora, nesta semana, em que iria vê-lo no Natal, pela última vez. Não houve esta última vez. O câncer que o devorava lenta e dolorosamente o matou um dia antes de minha chegada. A vida não espera. A morte não espera. Viver é risco. E o pior risco é o de não arriscar viver do lado de fora do isolamento, da covardia, do medo de um toque, de um gesto. Palavras e gestos adiados se perdem na memória do que poderia ter sido. E não voltam. Jamais. Cada oportunidade perdida não volta. Jamais.

Não me culpo, tampouco culpo meu tio por nossas diferenças ou mesmo distância calculada. Os poucos gestos de afeto real valeram a pena. Valeram, mas não foram suficientes. A vida nunca é suficiente. Os gestos, palavras e ações de cuidado é que fazem da vida uma tentativa maior que a mera sobrevivência ou medo da morte inevitável. A morte do meu tio, de meu pai, pai de minha família, morte próxima ao Natal, é também a distância eterna da última palavra de afeto que talvez disséssemos um ao outro, é uma tragédia que amadurece – por ensinar o valor da resignação diante do inevitável. Uma morte, perto do nascimento de Cristo, ensina que nada há a fazer diante de uma culpa que se extingue diante de gestos de amor que se imortalizam. Durante meses, todas as minhas tias cuidaram de meu tio como mães do irmão que delas cuidou como um pai. Não havia esperança de cura. A morte era inevitável. Havia a obrigação do cuidado de amor até o último instante. O cuidado da ação física, amorosa, em nome do amor que nos ampara e nos salva do medo de morrer.

Eu nada fiz. À distância, esperei a palavra e o gesto que não veio no último instante que não aconteceu. Palavras se somaram aos gestos de minhas tias que se uniram às suas ações e que nos uniram neste Natal amarrado na agora eterna memória afetiva de meu tio – que jamais partirá, na memória da palavra, do gesto e da ação suspensa no ar dentro de mim; na memória, na ação amorosa fincadas na história do amor de minha mãe e minhas tias tiveram com meu tio, com meu íntimo pai. Nosso pai . Uma morte de alguém próximo, próxima ao Natal, ensina a viver pelo zelo de cada ação que criamos em vida a quem amamos. A morte nos empurra pra vida, pro sentido urgente de uma ação de amor. Não consigo pensar em nenhuma mensagem de Natal maior que esta. Não consigo pensar em um valor natalino – pela primeira vez – tão real pra mim. Que seja esta a mensagem póstuma jamais dada a meu tio. Que possa ressuscitar em alguém o gosto permanente pela vida. Porque a morte é uma ilusão pra quem ama e age permanentemente em nome deste amor .

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