Brasil arrumou sua guerra doméstica para passar o tempo: a guerra da vacina
Nessa disputa entre o presidente Bolsonaro e o governador de São Paulo, João Doria, sobre a CoronaVac, o povo é só um detalhe
Para entrar numa guerra, o Brasil não precisa de muito. Nem motivo. O mundo está em guerra contra o vírus chinês. E, pelo que ainda parece, o Brasil pertence ao mundo. Pelo menos está no mapa. Seja como for, o país arrumou sua guerra doméstica para passar o tempo: a guerra da vacina. É uma guerra espantosa, dessas que chegam a envergonhar as pessoas civilizadas. A guerra se resume no seguinte: o presidente Bolsonaro odeia o governador de São Paulo, João Doria, e o governador de São Paulo, João Doria, odeia o presidente Bolsonaro. O povo é só um detalhe, como disse uma vez aquela ministra do ex-presidente Fernando Collor, Zélia Cardoso de Mello, quando os dois planejavam o confisco da poupança. Era um lance arriscado demais. Diante disso, Collor perguntou: “E o povo?”. Zélia respondeu: “O povo é só um detalhe!”. Pois ainda é assim até hoje.
Já estava tudo acertado. O ministro da Saúde, o general Eduardo Pazuello, assinou um protocolo com o Instituto Butantan, que pertence ao governo de São Paulo, para a compra de 46 milhões de doses da CoronaVac, a vacina chinesa. O acordo foi assinado entre o ministro e o inimigo do presidente, o governador João Doria. Tudo certinho. Ao saber do acordo, o presidente Bolsonaro explodiu e disse que o Brasil não comprará nenhuma vacina da China. Desmoralizou o seu ministro-general e pôs a boca no mundo. Bolsonaro afirmou que o ministro-general Eduardo Pazuello se precipitou em assinar o protocolo, observando que o ministro-general devia ter comunicado. “Eu sou o presidente!”, bradou. E sendo presidente da República, tem que ser informado antes. Ao meio disso tudo, o ministro-general da Saúde pegou o vírus chinês e entrou em quarentena. Preferiu ficar numa base militar para evitar problemas à família.
Desautorizado como foi, as más línguas de Brasília dizem que o general começou a ser fritado. Convirá dizer que a CoronaVac está em teste no Brasil, dentro de um acordo de produção e transferência de tecnologia entre a Sinovac e o Instituto Butantan, que pertence ao governo de São Paulo, significa que pertence ao governador João Doria. É ou não é assim? Sendo assim, o presidente Bolsonaro declarou guerra à China. O presidente se refere à vacina dizendo assim: “A vacina chinesa do Doria”. Não e não! Não tem conversa! O Brasil não vai comprar vacina nenhuma da China. E não falem da importância do Instituto Butantan do Doria, embora seja o um dos principais produtores de vacinas usadas no Programa Nacional de Imunização do Ministério da Saúde. Não interessa. Bolsonaro afirma que o povo brasileiro não é cobaia de ninguém. Diz, também, que a vacina chinesa representa a última cartada de João Doria para recuperar o que ele perdeu durante a pandemia.
Já Doria adianta que o presidente tem que ter a grandeza para liderar o Brasil na Saúde, na retomada do emprego e outras coisas mais. “A nossa guerra é contra o vírus, não é política, um contra o outro”, afirma Doria. Mas não tem conversa mesmo. O negócio do presidente Bolsonaro é produzir hidroxicloroquina. Esse é o remédio. Tanto que, desde o início da pandemia, o presidente tem incentivado a produção e o uso do medicamento. O exército brasileiro produziu 3 milhões de comprimidos, a um custo de R$ 1,5 milhão. Isso está sendo investigado pelo Ministério Público de Contas e pelo Tribunal de Contas da União. Mesmo em guerra, o presidente Bolsonaro fez nesta quinta-feira, 22, uma visita de cinco minutos ao ministro-general da Saúde em quarentena. De cara, o presidente perguntou: “Está tomando que remédio?”. O ministro-general desmoralizado deixou claro que está se tratando com o kit bolsonarista completo contra o coronavírus. Foi tudo muito rápido, como é próprio nas frituras. Conversaram como se estivessem numa barra, irresponsavelmente sem máscaras. Um exemplo. O deboche oficial.
Bolsonaro quer que o ministro-general volte em no máximo uma semana. E o ministro-general respondeu dizendo o seguinte: “Um manda e o outro obedece!”. Pegou muito mal. As mesmas más línguas de Brasília asseguram que os militares não engoliram esse episódio. Há informações de que o ministro-general está bastante abatido com tudo isso. Bolsonaro repetiu que a vacina chinesa não tem credibilidade nenhuma. Garantiu que ninguém quer a vacina da China porque não transmite confiança nenhuma devido à sua origem. Garantiu que não comprará a vacina chinesa nem que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa – comprove sua eficiência. Não vai comprar e ponto final! A Embaixada da China no Brasil rebateu o presidente, mas não se alongou no assunto. Afirmou apenas que a vacina chinesa está entre as mais avançadas do mundo. Convirá dizer que a China é o principal parceiro comercial do Brasil. Só neste ano, a China já importou quase 54 bilhões de dólares em produtos brasileiros, de acordo com o Ministério de Economia, do ministro Paulo Guedes, o engolidor de sapos oficial. Não é brincadeira: 54 bilhões de dólares. Será que o presidente Bolsonaro sabe disso? Algum assessor lhe teria soprado no ouvido? No final de tudo, Bolsonaro garantiu, sem que lhe perguntassem, que o general Eduardo Pazuello continuará no Ministério da Saúde, para ele o melhor de todos os ministros brasileiros que já passaram pela pasta. Então, estamos assim: um presidente que declara guerra à China; um governador chamado João Doria; um ministro-general doente atacado pelo vírus chinês; mais de 155.000 brasileiros mortos pelo descaso; e o povo observando sem saber o que dizer. Mas, como já se afirmou, o povo é só um detalhe. O povo sifu.
Comentários
Conteúdo para assinantes. Assine JP Premium.