Na guerra pela vacina, o povo brasileiro fica de lado e é feito refém

Tudo indica que Bolsonaro, como faz com a doença, tratou a disputa pela imunização com descaso, enquanto seu inimigo João Doria fazia seus cálculos

  • Por Álvaro Alves de Faria
  • 09/12/2020 12h31 - Atualizado em 09/12/2020 13h22
WILLIAN MOREIRA/FUTURA PRESS/ESTADÃO CONTEÚDO - 03/12/2020 O governador João Doria afirmou que a vacinação em São Paulo começa no dia 25 de janeiro de 2021

No fundo, um espetáculo triste. Melancólico. Lastimável. Um espetáculo inaceitável em qualquer país que se queira civilizado. As cenas lamentáveis atuais, entre outras tantas, são as discussões sobre o programa de vacinação contra o vírus no Brasil. Os outros países discutem o assunto seriamente levando em conta a vida de suas populações. E a qualquer avanço, festejam como mais um degrau vencido contra a doença. No Brasil, não. Aqui é diferente. Mas, sinceramente, não há nada de novo nisso. O presidente Bolsonaro disse na segunda-feira, 7, que a vacina contra o coronavírus será distribuída a toda a população brasileira gratuitamente, mas não será obrigatória. Basta que a vacina tenha a aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Mas não citou vacina nenhuma. Nem sabe ainda se vale para todas as que estão sendo produzidas em vários países. Prefere fazer um jogo de mistério, bem próprio entre os que disputam uma guerra. E a guerra da vacina promete muito neste país que nunca sabe que rumo tomar. Não se sabe, por exemplo, se essa determinação vale para a CoronaVac, a vacina chinesa produzida em parceria com o Instituto Butantan, do governo do Estado de São Paulo. Em outras palavras, não se sabe se a palavra de Bolsonaro valerá para a “vacina chinesa do Doria”. Seja como for, Bolsonaro informou que todo mundo será vacinado no país.

O Ministério da Economia, do Paulo Guedes, já comunicou que não faltará dinheiro para isso. Os cofres estarão à disposição. A guerra da vacina começa a preocupar os pobres mortais, que somos nós. De um lado, Jair Bolsonaro, do outro, seu inimigo, João Doria. O governador de São Paulo já garantiu que a vacinação no estado será iniciada no dia 25 de janeiro, dia do aniversário da capital paulista. Doria utilizará a vacina CoronaVac, que faz Bolsonaro tremer nas bases do Palácio do Planalto. Na trincheira do Palácio dos Bandeirantes, Doria, que colocou Bolsonaro numa posição desconfortável numa guerra. Doria só não vacinará a partir do dia 25 de janeiro se a Anvisa não aprovar a vacina chinesa. Bolsonaro perde. E perde muito. Se a Anvisa aprovar a vacina, Doria iniciará sua festa. E Bolsonaro perderá também. E perderá muito. Numa guerra, todos os riscos precisam ser calculados. Tudo indica que Bolsonaro, como faz com a doença, tratou a guerra com descaso, enquanto o inimigo João Doria fazia seus cálculos.

Fora isso, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, decidiu formar fileiras com Doria. Rodrigo Maia garante que a Câmara decidirá como será a vacinação, com ou sem o aval do governo. Não interessa. A esta altura da guerra, com tantos feridos e mais de 175 mil brasileiros mortos, a ordem é ir para o campo de batalha com artilharia pesada. Mas Rodrigo Maia esclarece que tentará ainda um acordo com Jair Bolsonaro. Tentará, mas não insistirá muito. Chega uma hora que não vale a pena insistir com nada. Maia e João Doria temem que a população brasileira entre em pânico com a falta da vacina. Ele não está para brincadeira. Já avisou Bolsonaro que a Câmara dos Deputados vai avançar nessa questão, adiantando que tem a cobertura do Supremo Tribunal Federal que, mesmo desmoralizado, pode ser um parceiro de boa pontaria nessa guerra brasileira.

A vacina chinesa do Doria ainda não foi totalmente aprovada na China, mas já está sendo utilizada em regime de emergência, por ordem das autoridades do país. Pouco importa aprovação. O povo quer a vacina. O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, também se aliou a João Doria. Já entrou em contato com o Instituto Butantan com o objetivo de comprar a vacina chinesa. O Rio Grande do Sul tem um acordo com o governo federal, mas diz claramente que vai comprar a vacina chinesa do Doria para evitar alguma decepção de última hora. Numa guerra ninguém sabe o que pode acontecer. O governador afirma que tem 11,5 milhões de gaúchos sob sua responsabilidade,  observando que não se pode confiar em ninguém no caos político em que vive o país que conseguiu politizar o vírus, a doença e, agora, a vacina. O Ministério da Saúde, por seu lado, ainda não divulgou qual é seu plano de vacinação no país. Não diz nada. Na guerra, o segredo é importante. Mas sabe-se que o governo brasileiro está em negociações com farmacêuticas para comprar vacinas suficientes. Bolsonaro cita vários laboratórios, mas não diz nada sobre a vacina chinesa desenvolvida junto com o Instituto Butantan. Nem pensar.

E enquanto essas coisas se arrastam até com um certo desinteresse, seis governadores se reuniram nesta terça-feira, 8, com o ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello. O ministro e Doria se desentenderam e a conversa foi bastante áspera, a ponto de Pazuello afirmar que só comprará a vacina chinesa se houver demanda. Os governadores pediram mais clareza na luta contra a imunização. Não adianta ficar com esse chove não molha. Não adianta nada. É muita conversa para boi dormir. Os governadores criticaram duramente a falta de coordenação do governo federal. Afirmaram ser necessário colocar a vida das pessoas em primeiro lugar. E o governo federal tem de realizar um trabalho nacional para vacinar o povo contra o vírus. E para terminar a terça-feira, 7, o ministro da Saúde fez um pronunciamento pela televisão. Foi deprimente. O que se viu na TV foi um ministro com cara de assustado dizendo coisas que, na verdade, eram recados para João Doria. Deixou claro que o programa de vacinação pertence ao Ministério da Saúde, a ninguém mais. A guerra está se alastrando. E nessa guerra particular, o povo brasileiro fica de lado. É o refém.

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