A escrivaninha: onde passei a vida dando vida às minhas ideias

Por que será que os pensamentos têm o maldito hábito de surgirem no meio da noite?

  • Por Bia Garbato
  • 02/08/2023 10h00
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Freepik Escrivaninha com computador, vaso e outros objetos Escrivaninha com notebook

Por um bom tempo, preenchi cadernos vermelhos com letra cursiva — boa, por sinal —, com minhas ideias e sentimentos. Anos depois, chegou o primeiro computador na minha casa. Num cantinho do nosso quarto de estudos (três escrivaninhas e gaveteiros para as três irmãs “estudiosas”), ficava aquele trambolhão, junto a uma linha telefônica, para falar com amigos e paquerinhas pelo ICQ. Se hoje a internet cai pra caramba, aquilo era sacanagem. Fiquei fascinada com a ideia de apertar teclinhas e as palavras escorregarem na folha branca. Aquilo estava muito mais perto do ritmo dos meus pensamentos. É claro que eu ainda não tinha destreza no teclado, mas me dediquei dias e noites para ficar rápida, como um tiro, na arte da digitação. Escrevia palavras soltas tipo: “macaco trapézio gostaria…” só para vê-las surgindo, cada vez com menos erros. Às vezes, fazia um poema que achava bom. Ou uma crônica escrachada que valia a pena mostrar pros amigos. Então, gravava num disquete e levava pra escola, para imprimir no laboratório de informática.

Mu­itos anos se passaram. O advento do laptop chegou à minha vida. Por muito tempo, trabalhei na minha cama. Afinal, ele estava substituindo meu caderninho de confissões antes de dormir. Junto com o notebook, veio a paixão pelo Word. Como não amar um programa chamado Pa-la-vra. Resisti bravamente a editores de texto aventureiros e não me venha com Google Docs. Sei que salva automaticamente e provavelmente vou perder muito menos textos, mas Word é tipo livro em papel, tem qualquer coisa que nos conforta.

Em posturas insalubres, passei anos trabalhando entre o sofá e a cama. Meu marido condenava: “Você vai acabar com as suas costas. Um dia, não vai conseguir mais levantar a cabeça”. E eu fingia que não tinha nada a ver, cheia de dores no pescoço, lombar e adjacências. Na casa em que moro hoje não tem quarto de estudos, como na minha infância. Mas, há alguns anos, resolvi comprar uma escrivaninha acanhada, dessas que você monta em casa e balança enquanto a gente digita. Ela foi acomodada no meu quarto, num cantinho ao lado da cama. Não só porque não tinha outro lugar, mas porque as madrugadas, às vezes, rendiam. Por que será que as ideias têm o maldito hábito de pulular na hora de um pipi, no meio da noite? Foi nessa “escrivaninha” que escrevi o meu livro. Foi nela que fiz lives calls na pandemia, desfocando os travesseiros que ficavam atrás. Pouco antes de lançar meu livro, fizemos uma reforminha em casa e reservamos um espaço para eu chamar de “meu escritório”. Arrastei a mesinha cansada para o local e conquistei um monitor que fez das letrinhas, letronas. Tipo óculos novo. Só que elas ainda sambavam, graças a estrutura frágil da minha velha companheira.

Hoje foi instalada uma mesa em L(!), de marcenaria, no meu escritório. Na verdade, de “mdferia”, forrada de laminado tipo madeira, muito melhor pra limpar. Pensa numa pessoa feliz espalhando portas lápis (plural), separados por tipo: canetinhas Pilot, canetinhas Stabilo, lápis de cor, bics e lapiseiras… O único defeito é que não dá para levá-la para cama, para receber as ideias do meio da noite. Mas não tem problema, não. Por garantia, hoje vou dormir deitada nela.

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.

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