O que esperar da privatização dos Correios?

Diversas questões precisam ser definidas para garantir não apenas um bom negócio para a União, mas um serviço de qualidade aos usuários; até mesmo a alteração da Constituição não está descartada

  • Por Fernando Vernalha
  • 25/10/2020 08h00
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Elza Fiúza/Agência Brasil Agência dos Correios Esboço de projeto de lei para desestatização dos Correios deve chegar ao Congresso no ano que vem

Nos últimos dias, um esboço do projeto de lei que pretende viabilizar o programa de desestatização dos Correios foi entregue pelo Ministério das Comunicações à Secretaria de Assuntos Jurídicos da Presidência da República. A ideia é que ele chegue ao Congresso no ano que vem. Paralelamente, o BNDES avança com os estudos para a estruturação do processo de desestatização da empresa, incluído no Programa de Parcerias de Investimentos da Presidência (PPI), por meio do Decreto 10.066/19. Mas ainda pouco se sabe sobre as definições desse programa. Nem os estudos alcançaram a sua fase de maturidade nem a proposta de atualização legislativa traz definições mais avançadas. Trata-se, como o próprio Ministro das Comunicações se referiu, de propostas mais ao nível dos princípios do que das regras. O que se sabe é que o processo não será simples e fácil. Muito pelo contrário.

A primeira dificuldade a ser superada será a mudança da legislação. A Constituição Federal atribuiu à União o encargo de manter o serviço postal, deixando ao legislador infraconstitucional a prerrogativa de definir os limites e a forma pela qual essa manutenção deverá ser provida (art. 21, X). Essa definição legal sobre a forma e os limites para a manutenção do serviço postal já existe: está na Lei 6.538, de 1978, que, embora anterior à Constituição de 1988, foi por ela recepcionada – como já reconheceu o STF no acórdão da ADPF 46, proferido em 2009. Esta lei não apenas instituiu o “monopólio” da União sobre certos serviços postais, como os serviços de transporte de carta e cartão-postal e de correspondência agrupada, mas definiu a forma de empresa pública federal para a sua exploração. Por isso, qualquer que seja o modelo de desestatização adotado para o caso, será necessária uma mudança da legislação, com vistas a permitir que a manutenção do serviço postal imposta pela Constituição possa ser viabilizada por formas jurídicas alternativas à da empresa pública, que permitam a exploração e a operação do serviço por empresas privadas.

Até mesmo a necessidade de alteração da Constituição não parece completamente descartada até aqui, a depender do modelo que se queira para o serviço postal. É discutível, é verdade, se a Constituição qualificou aqueles serviços postais como serviço público e, portanto, como de exploração exclusiva pela União. Na minha visão, o dever de manter o serviço postal não confere à União qualquer exclusividade para a sua prestação, mas a obriga apenas a garantir a sua disponibilidade, por qualquer meio que seja. Mas esse não foi o entendimento do STF ao enfrentar o tema. Segundo o Supremo, os serviços postais referidos acima são, sim, serviço público, e, por isso, conferem o privilégio postal à União. Se assim forem entendidos, esses serviços só poderão ser operados por privados por meio de concessões, permissões ou autorizações, a depender do regime instituído pela lei. Para superar essa limitação e abrir esse mercado, atribuindo estes serviços à livre iniciativa, seria preciso mudar a Constituição.

Isso parece improvável no atual contexto. A tendência é que esse programa de desestatizações se restrinja a ampliar, por meio de lei, as formas jurídicas de manutenção deste serviço pela União, eliminando o “monopólio” e a exigência de que isso se dê sob a forma de empresa pública e disciplinando as hipóteses de prestação do serviço por meio de concessões ou vias equivalentes. Mas isso será apenas um ponto de partida para a desestatização dos Correios. Uma série de outras questões relevantes ainda precisarão ser definidas com relação à própria modelagem da desestatização. Por exemplo: dada a abrangência da operação dos Correios, como se daria o fatiamento e a regionalização da prestação do serviço como diretrizes a orientar a transferência a operadores privados? Qual seria o modelo de desestatização: alienação da integralidade das ações, juntamente com a celebração de contratos de concessão? Outorga de concessões diretamente pela União a empresas privadas – cenário em que a empresa dos Correios seria esvaziada e seus ativos cedidos ou locados no bojo daquelas concessões? Abertura de capital da empresa com venda pulverizada de ações e manutenção do controle acionário? A União, enfim, pretende permanecer como sócia da empresa? Majoritária ou minoritária? Na hipótese de permanecer como sócia minoritária, como se daria a alienação do controle, de modo pulverizado ou concentrado? Essa e tantas outras questões precisam ser aprofundadas e definidas com vistas a garantir não apenas um bom negócio para a União, mas principalmente um serviço universal, eficiente e de qualidade aos usuários. Ou seja: estamos ainda no início de um longo caminho até a redefinição do modelo de prestação do serviço postal no Brasil. Embora a desestatização dos Correios seja uma pauta desejável – assim como a privatização de outras tantas empresas que integram a carteira de privatizações do governo federal –, ela não é simples e muito menos célere. Parece improvável que se conclua no calendário proposto pelo governo. Mais do que se conclua com pressa, o importante é que se conclua bem. Afinal, o que se espera é que ele seja um avanço importante na direção da modernização do serviço postal no Brasil.

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