O que esperar da privatização dos Correios?
Diversas questões precisam ser definidas para garantir não apenas um bom negócio para a União, mas um serviço de qualidade aos usuários; até mesmo a alteração da Constituição não está descartada
Nos últimos dias, um esboço do projeto de lei que pretende viabilizar o programa de desestatização dos Correios foi entregue pelo Ministério das Comunicações à Secretaria de Assuntos Jurídicos da Presidência da República. A ideia é que ele chegue ao Congresso no ano que vem. Paralelamente, o BNDES avança com os estudos para a estruturação do processo de desestatização da empresa, incluído no Programa de Parcerias de Investimentos da Presidência (PPI), por meio do Decreto 10.066/19. Mas ainda pouco se sabe sobre as definições desse programa. Nem os estudos alcançaram a sua fase de maturidade nem a proposta de atualização legislativa traz definições mais avançadas. Trata-se, como o próprio Ministro das Comunicações se referiu, de propostas mais ao nível dos princípios do que das regras. O que se sabe é que o processo não será simples e fácil. Muito pelo contrário.
A primeira dificuldade a ser superada será a mudança da legislação. A Constituição Federal atribuiu à União o encargo de manter o serviço postal, deixando ao legislador infraconstitucional a prerrogativa de definir os limites e a forma pela qual essa manutenção deverá ser provida (art. 21, X). Essa definição legal sobre a forma e os limites para a manutenção do serviço postal já existe: está na Lei 6.538, de 1978, que, embora anterior à Constituição de 1988, foi por ela recepcionada – como já reconheceu o STF no acórdão da ADPF 46, proferido em 2009. Esta lei não apenas instituiu o “monopólio” da União sobre certos serviços postais, como os serviços de transporte de carta e cartão-postal e de correspondência agrupada, mas definiu a forma de empresa pública federal para a sua exploração. Por isso, qualquer que seja o modelo de desestatização adotado para o caso, será necessária uma mudança da legislação, com vistas a permitir que a manutenção do serviço postal imposta pela Constituição possa ser viabilizada por formas jurídicas alternativas à da empresa pública, que permitam a exploração e a operação do serviço por empresas privadas.
Até mesmo a necessidade de alteração da Constituição não parece completamente descartada até aqui, a depender do modelo que se queira para o serviço postal. É discutível, é verdade, se a Constituição qualificou aqueles serviços postais como serviço público e, portanto, como de exploração exclusiva pela União. Na minha visão, o dever de manter o serviço postal não confere à União qualquer exclusividade para a sua prestação, mas a obriga apenas a garantir a sua disponibilidade, por qualquer meio que seja. Mas esse não foi o entendimento do STF ao enfrentar o tema. Segundo o Supremo, os serviços postais referidos acima são, sim, serviço público, e, por isso, conferem o privilégio postal à União. Se assim forem entendidos, esses serviços só poderão ser operados por privados por meio de concessões, permissões ou autorizações, a depender do regime instituído pela lei. Para superar essa limitação e abrir esse mercado, atribuindo estes serviços à livre iniciativa, seria preciso mudar a Constituição.
Isso parece improvável no atual contexto. A tendência é que esse programa de desestatizações se restrinja a ampliar, por meio de lei, as formas jurídicas de manutenção deste serviço pela União, eliminando o “monopólio” e a exigência de que isso se dê sob a forma de empresa pública e disciplinando as hipóteses de prestação do serviço por meio de concessões ou vias equivalentes. Mas isso será apenas um ponto de partida para a desestatização dos Correios. Uma série de outras questões relevantes ainda precisarão ser definidas com relação à própria modelagem da desestatização. Por exemplo: dada a abrangência da operação dos Correios, como se daria o fatiamento e a regionalização da prestação do serviço como diretrizes a orientar a transferência a operadores privados? Qual seria o modelo de desestatização: alienação da integralidade das ações, juntamente com a celebração de contratos de concessão? Outorga de concessões diretamente pela União a empresas privadas – cenário em que a empresa dos Correios seria esvaziada e seus ativos cedidos ou locados no bojo daquelas concessões? Abertura de capital da empresa com venda pulverizada de ações e manutenção do controle acionário? A União, enfim, pretende permanecer como sócia da empresa? Majoritária ou minoritária? Na hipótese de permanecer como sócia minoritária, como se daria a alienação do controle, de modo pulverizado ou concentrado? Essa e tantas outras questões precisam ser aprofundadas e definidas com vistas a garantir não apenas um bom negócio para a União, mas principalmente um serviço universal, eficiente e de qualidade aos usuários. Ou seja: estamos ainda no início de um longo caminho até a redefinição do modelo de prestação do serviço postal no Brasil. Embora a desestatização dos Correios seja uma pauta desejável – assim como a privatização de outras tantas empresas que integram a carteira de privatizações do governo federal –, ela não é simples e muito menos célere. Parece improvável que se conclua no calendário proposto pelo governo. Mais do que se conclua com pressa, o importante é que se conclua bem. Afinal, o que se espera é que ele seja um avanço importante na direção da modernização do serviço postal no Brasil.
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