A breve história de uma nascente

Sou água, nasci no chão, molho a terra e me dei bem com o homem até que ele, alimentado por sua ganância, esqueceu-se deliberadamente do meu valor

  • Por Helena Degreas
  • 12/04/2022 16h15 - Atualizado em 12/04/2022 22h14
Helena Degreas/Arquivo Pessoal a imagem mostra um córrego canalizado correndo entre duas áreas cercadas de árvores. num dos lados, é possível ver um grande tubo por onde correm águas das chuvas para dentro dele) Córrego das Corujas, que atravessa o bairro de Pinheiros, na zona oeste da cidade de São Paulo

Nascente, cabeceira, olho-d’água, mina de água, fonte. Tenho vários nomes. A colunista para quem contei minha história, por exemplo, não percebeu e literalmente afundou o pé na terra encharcada. O que esperava encontrar? Sou água, nasci no chão. Molho a terra. É da minha natureza. Brava, praguejou no começo da entrevista, mas depois de algum tempo viu toda uma vida à minha volta, da qual, eu era a responsável. Mas vamos, aos poucos, começar minha história pelo começo.

Dizem que eu, nascente de águas, córregos, arroios, ribeirões e rios, estou aqui há alguns bilhões de anos. Afirmam que eu já estava aqui, presa nas pedras e demais elementos que criaram a Terra. Parece que fui libertada pelos inúmeros processos climáticos e geológicos que formaram nosso planeta. Outros comentam que eu caí aqui, aparentemente numa trombada entre asteroides, cometas e a Terra. É até possível, dizem os cientistas, que eu tenha sido criada pelos dois processos. A única certeza que tenho é que sou parte dos seres vivos que dependem de mim para a sua existência. Se não fosse assim, os cientistas que viajam com seus foguetes em busca de novos locais para o homem habitar lá fora, no universo, não estariam procurando por minhas primas, outras fontes de água que, como eu, permitem que a vida aconteça. Parece que Saturno tem gelo, um parente meu, e uma das luas de Júpiter, que foi batizada de Europa, tem outro parente, o vapor d’água. 

Mas, voltemos à história. Quando os povos ancestrais coabitavam numa terra sem nome, sem donos e sem limites, impostos por outros homens, eu, água doce, fonte de vida, me sentia bem com os usos que me davam: beber, plantar, banhar-se no próprio leito. Com o tempo, encontraram um jeito de me conter: jarras, cântaros e outros utensílios foram sendo criados para me levar onde eu era necessária. 

Não vi o tempo passar. Fluía naturalmente, por conta própria: bastava um trecho de terra num leito que eu corria, leve e solta. Às vezes, outras águas, meio aparentadas, se uniam a mim e, juntas, criávamos rios caudalosos, repletos de peixes. O vapor formado pelo sol quente sobre mim, alimentava a nuvem que, repleta das minhas partículas, literalmente engordava e, pesada, chovia. Se chovia demais, eu transbordava do leito para os lados, para as minhas margens, e voltava para meu lugar de origem. Sempre foi assim. Ainda é assim que eu, água doce de rio, criada em nascente, sou.

O tempo passou. Por aqui, índios e, posteriormente, quilombolas buscavam morar nos arredores de onde eu, água, nascia e corria. Sabedores dos meus humores, respeitavam a fúria das minhas inundações e a tristeza causada pelas longas estiagens.  Nunca construíam sobre o local das inundações pois não eram bestas nem nada e, tampouco, tiravam o mato e as árvores de onde eu, nascente, fonte da vida, surgia do chão. Sabiam que, sem a trama de raízes e sem a sombra, a terra, ressecada pelo sol inclemente, endurecia e era incapaz de absorver a chuva. Sem o mato no caminho, eram sabedores de que a terra barrenta iria direto para o meu leito, que, mais raso e cheio de sedimentos, mataria os peixes que os alimentavam. Vez e outra, eu destruía seus roçados, desmanchava suas taperas, mas nunca revidaram, tentando me domar, destruindo-me. A certeza dos meus humores e movimentos, gerava o entendimento de como a natureza funcionava. Juntos, eu, a água doce dos rios, e eles, humanos, nos demos bem, até que o homem, alimentado pelo querer mais e mais, com sua ganância, esqueceu-se deliberadamente do meu valor, sujeitando-me aos seus caprichos e vontades.  

Mudaram seus hábitos, fixaram-se em cidades e eu, nascente, água, fui sendo adaptada, transformada, modificada, mutilada. Tantas são as alterações até hoje que não me reconheço mais. As casas e seus habitantes, que antes tiravam o necessário para a sua subsistência, foram ocupando todo o chão de terra, e eu, água, que antes descia, agora subo morrotes e montanhas pelos canos que substituíram os potes e baldes. Água subindo o morro? Pois é… Não subi sozinha, foi o homem que inventou isso. Botaram preço em mim. Chamaram de infraestrutura. Dizem que tem de me buscar lá longe, limpar e distribuir nas cidades. Eu nunca tive preço. Agora as pessoas pagam para me ter na torneira.

Meus meandros, foram retificados à força para que avenidas e outras construções pudessem ocupar aquilo que as pessoas da cidade entendiam como terrenos livres de mim, dos meus charcos, poças e terra molhada. Mas eu já estava lá. Sou água e permaneço, pela lei da natureza, no mesmo lugar. As árvores e as raízes? Sumiram todas e, em seu lugar, há avenidas, prédios e estacionamentos. Cimentaram, asfaltaram cada pedacinho de terra. Dizem que é importante garantir a fluidez e o estacionamento dos carros. Nunca entendi essa história. E desde quando carro é mais importante do que água? De onde virá a umidade para ajudar nas chuvas? E, sem elas, como posso eu, nascente, água de rio, fonte de vida, continuar existindo? De onde virá a água para dar de beber às pessoas?

Distantes da minha natureza, enterrada, canalizada, tamponada, escondida sob a terra, recebo diariamente fluidos e líquidos de todo tipo, sujos, sem tratamento, que vem dos prédios, das construções e das ruas em quantidades enormes. E quando chove então? Com o clima mudado pelas ações dos homens, responsabilizam-me pelos estragos, perdas materiais e mortes, logo eu, que sou fonte de vida. Eu já estava lá. Quando a tempestade vem, o asfalto e os cimentados escorrem toda a chuva que antes eu, riacho e terra repleta de árvores, absorvia e levava lentamente para o fundo da terra, alimentando outros rios e nascentes que surgiam em outros chãos, lá longe.

Calcularam mal as obras de engenharia urbana: os alagamentos e inundações são obras planejadas pelo homem. As perdas e mortes são consequências previsíveis. Tanto os autores das obras quanto os representantes políticos, que deram o dinheiro e a ordem para construir, deveriam ser punidos. Não tem sarjeta, bueiro, condutores, reservatórios, piscinões e mais outros artefatos que possam dar conta de todas as águas que vem das mudanças que fizeram em mim e nas outras águas. 

Ouvi dizer de jovens e vizinhos que cuidam de mim e das demais nascentes e riachos que atravessam as cidades que ações que pretendem destamponar e revitalizar a água doce em diversas cidades mundo afora estão acontecendo. Os mesmos políticos e técnicos que me tratavam como esgoto a céu aberto, agora, diante das mudanças climáticas e do sumiço da água doce nas cidades, provocada pelas longas estiagens, estão investindo dinheiro público e de empresas parceiras para resgatar meu papel no mundo, de nascente, fonte de vida. Será verdade? Espero que sim.

Como disse à colunista que me observava, as lições de respeito e deferência às questões ambientais e, em especial, a todas as águas que represento neste texto, vem sendo resgatadas de alguma forma pela população e inúmeros ativistas que, com suas ações, vêm buscando soluções baseadas no funcionamento da natureza e de todos os seus elementos para pautar as decisões de planejamento de cidades sustentáveis e mais humanas.

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.

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