A difícil convivência entre nossos biomas e o processo de urbanização brasileiro

Formações naturais, mesmo em áreas urbanizadas, não atendem ao clamor por cidades resilientes aos aspectos climáticos; desafio proposto pela Agenda 2030 de ‘não deixar ninguém para trás’, no Brasil, não vale

  • Por Helena Degreas
  • 08/11/2022 10h00 - Atualizado em 08/11/2022 21h58
Jonne Roriz/Estadão Conteúdo - 01/07/2004 Vista aérea da ocupação irregular nas áreas de mananciais da represa Billings, em São Paulo. Ocupação irregular nas áreas de mananciais da represa Billings, em São Paulo

Se você achava que só a Floresta Amazônica estava sendo substituída por cidades e fazendas, enganou-se: a maior perda de formações naturais que vem sendo substituída pelo processo de urbanização dos últimos 37 anos ocorreu no Cerrado (156,5 mil hectares, 28%), seguido da Mata Atlântica (130 mil ha, 23%), Amazônia (123 mil ha, 22%), a Caatinga (108 mil ha, 19%), o Pampa (40 mil ha, 7%) e o Pantanal (778 ha). Na semana passada, o Instituto Mapbiomas publicou um estudo em que mostra como os processos de urbanização vêm reduzindo as áreas dos diversos biomas brasileiros. Trata-se de um trabalho colaborativo realizado em rede constituída por mais de 100 pesquisadores de universidades, ONGs e empresas de tecnologia no Brasil — que, por meio de processamento de 150 mil imagens Landsat (5,7 e 8) contendo informações das 27 classes de cobertura do solo e uso da terra disponíveis entre os anos de 1985 e 2021, gerou as imagens que compõem a pesquisa. O relatório é precioso para aqueles que desenvolvem políticas públicas relacionadas ao planejamento urbano e políticas habitacionais ao mostrar como foi a evolução do processo de urbanização, onde ocorreu, de que forma e, ainda mais importante, identificando as áreas ocupadas por favelas. O resultado apresenta um quadro que aponta a urgência de se tratar a questão habitacional para além das regulações urbanas tradicionais e códigos de obras existentes em várias cidades. Seguir as regras nem sempre é sinônimo de qualidade de ocupação. Os números da pesquisa apontam que as formações naturais, mesmo em áreas urbanizadas, centrais, historicamente constituídas, não atendem ao clamor internacional por cidades resilientes e sustentáveis aos aspectos climáticos. O desafio proposto pela Agenda 2030 de “não deixar ninguém para trás”, no Brasil, não vale. Tem muito chão para percorrer. A segregação socioespacial materializa-se na paisagem urbana de qualquer cidade brasileira, infelizmente.

Nos levantamentos apresentados, o processo de urbanização cresceu três vezes nos últimos 37 anos, enquanto os Aglomerados Subnormais (AGSN) cresceram 3,4 vezes em média em todo o território nacional. Neste ponto, a urbanista Raquel Rolnik, convidada a se posicionar frente aos resultados durante uma live de apresentação do relatório, recomendou ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) a substituição da expressão Aglomerados Subnormais para bairros autoproduzidos caracterizados pela autoconstrução por cidadãos. De acordo com Rolnik, o conceito pode estigmatizar 15% da população brasileira, levando a intervenções públicas inadequadas que impactam sobremaneira os mais pobres. A remoção e a desocupação deveriam ser a exceção e não a regra para esta situação. Para cada 100 hectares, o estudo apontou que 15 deles ocorreram sobre áreas ambientalmente vulneráveis, pois são inadequadas à urbanização, uma vez que requerem técnicas de construção, formas de ocupação e recursos financeiros inacessíveis à população mais pobre. Se somadas, as áreas de favelas ocupam 106 mil hectares, situação que representa duas cidades de Belo Horizonte ou cerca de 70% da cidade de São Paulo. O país apresenta um déficit habitacional de 5,8 milhões de moradias (Fundação João Pinheiro, 2019), situação que irá se gravar muito com o corte de 90% do programa Casa Verde e Amarela feito pelo presidente Bolsonaro, que, em 2023, deixará como marca de sua atuação desastrosa no setor um país em que brasileiros não terão nem emprego (não haverá financiamento da construção civil) nem casa (falta de crédito direcionado à população de baixa renda para financiamento). Impressionante!

Os mapas mostram que, para além do necessário adensamento demográfico das cidades, o processo de urbanização ocorre de forma esparramada, especialmente ao longo de eixos rodoviários. Tanto os loteamentos do mercado formal (legalizados) quanto aqueles originários do mercado informal (sem escritura) vão aos poucos destruindo os biomas sem que o poder público forneça uma contrapartida minimamente adequada, voltada à criação de políticas habitacionais que coadunam as reais expectativas e possibilidades financeiras da população. Mesmo o programa Minha Casa, Minha Vida, criado no governo Lula, ofereceu residências, mas empurrou a população de baixa renda para longe dos centros urbanos. Soluções capazes de resolver o déficit habitacional no Brasil, existem e são conhecidas: aumento de crédito para a implementação de melhorias habitacionais associado ao aumento dos recursos governamentais para a implementação do Assistência Técnica em Habitação de Interesse Social (ATHIS) e contratação de profissionais para as obras; aquisição pelo poder público de habitações para a constituição de estoque para uso em situações emergenciais, e não apenas as casas contêiner propostas na cidade de São Paulo pelo atual prefeito; subsídio para moradia de aluguel; e, por fim, a utilização de imóveis vazios públicos e compra de imóveis privados para uso residencial. 

Se 15% da população brasileira reside em bairros autoproduzidos e constrói suas próprias habitações, por que o poder público, historicamente ausente e ineficaz no atendimento às expectativas da população mais pobre para programas habitacionais e de financiamento das moradias, não assume as demais soluções que já existem? Se não tem dinheiro suficiente para construir, que pensem em outras possibilidades. Quais serão as propostas brasileiras do futuro presidente Lula para atender ao “pacto de solidariedade” proposto pelo chefe da ONU durante a abertura da Conferência do Clima (COP-27), no último domingo, em Sharm El Sheikh, no Egito? O fato é que políticas urbanas sustentáveis apenas são possíveis quando esforços entre governos, empresas e pessoas buscam a construção de espaços em que prevaleçam a equidade, inclusão, justiça socioambiental e o bem-estar de toda a população.

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*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.

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