Ideia de ‘cidade dos carros’ persiste, e a de crianças e ciclistas atropelados e mortos, também

Ao tentar atravessar a rua ao lado de uma idosa, ouvi ‘a madame virou guardinha de trânsito?’; faltam campanhas publicitárias que eduquem cidadãos informando que a travessia sempre favorece o mais frágil

  • Por Helena Degreas
  • 15/02/2022 10h00 - Atualizado em 15/02/2022 17h26
Katarine Almeida/Flickr/Prefeitura de Boa Vista Policial acena para que pai atravesse a rua com seu filho Guarda de trânsito acena para que pedestres possam atravessar a rua na faixa de pedestres

Foi assim que comecei minha segunda-feira. Descrição da cena cotidiana de quem, como eu, locomove-se a pé pela cidade. Paro na calçada em frente à faixa de pedestres aguardando que algum motorista obedeça o Código de Trânsito Brasileiro e me deixe atravessar num cruzamento com conversão de veículos. Por quê? Os semáforos para automóveis estão lá. Mas aquele outro que só pedestre usa, não tem. Apesar de ser uma avenida movimentada, com várias mãos de direção, conto com a boa vontade dos condutores de veículos que, sabendo que estou me locomovendo a pé, também necessito atravessar a rua. Fiz o gesto de braço: aquele que apresenta ao motorista minha intenção em atravessar. Vejo uma senhorinha idosa atravessando no seu ritmo: humano. Postei-me perigosamente em frente ao carro com a mão na frente dele enquanto ela esforçava-se para atravessar a rua correndo e não ser atropelada. Foi neste contexto que a falta de civilidade mostrou-se à luz do dia e sem filtro: “A madame virou guardinha de trânsito?”

Pensei em berrar todo o dicionário de baixo calão que trago em mim, além de outros impropérios que domino em alguns idiomas, mas aí pensei melhor e mandei voltar para a autoescola e estudar o Artigo 70 do Código Brasileiro de Trânsito que prevê, dentre outras coisas, que “os pedestres que estiverem atravessando a via sobre as faixas delimitadas para esse fim terão prioridade de passagem”. É crime, portanto, não priorizar. É passível de multa. Ri de mim mesma. Até parece que algum agente de trânsito irá multar alguém que não priorize a travessia de pedestres. Nunca presenciei. Espero estar errada.

Os comportamentos adotados pelo condutor e pela senhora que corria para atravessar, mostravam que tanto um quanto o outro não conhecem a legislação de trânsito. Faltam campanhas publicitárias para a educação de pedestres e motoristas informando, aos dois, que a travessia sempre favorece o mais frágil e vulnerável, ou seja, o pedestre. O peso de um automóvel é infinitas vezes superior ao de um ser humano. Parece óbvio, mas não é. Alguns, como eu, reforçam a intenção de travessia e avisam com o gesto de braço que, aparentemente, irritou o ignorante que estava ao volante.

A resolução do Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN) nº 871 de 13 de setembro de 2021 estabelece o tema, a mensagem e o cronograma das campanhas educativas de trânsito a serem realizadas de janeiro a dezembro de 2022 e que determinam as mensagens educativas de trânsito voltadas exclusivamente para o público-alvo destinadas à divulgação ou promoção de produtos oriundos da indústria automobilística ou ainda àqueles que são os condutores de veículo. Todas as peças publicitárias que têm por objetivo apresentar novos veículos no mercado, seja qual for o fabricante ou marca, deverão conter informações que colaborem na educação do trânsito, em especial aos condutores. Para o ano de 2022, a publicidade anunciada na TV e demais meios de comunicação deve conter frases que eduquem motoristas. Citarei algumas delas que, em tese, servem para orientar o motorista e a idosa que corria para atravessar:

  • No trânsito, a vida vem primeiro.
    Seja gentil. Seja o trânsito seguro.
    Trânsito seguro: eu faço a diferença.
    Respeito no Trânsito. Uma via de mão dupla

A segunda frase li outro dia numa propaganda de TV aberta com 30 segundos de duração. Confesso que, apesar de míope, ainda consigo ler bem e com facilidade. Não consegui encontrar a tal frase. Encontrei o teaser da tal peça publicitária no YouTube e, depois de assistir nove vezes, encontrei a frase. Tímida, singela, sem contraste algum, no cantinho inferior direito da tela e com tamanho de fonte (letra) que, de tão pequeno, impedia a visibilidade. Quase esqueci de mencionar o tempo disponibilizado para a leitura. As seis palavras da mensagem “Seja gentil. Seja o trânsito seguro” deveriam ser lidas em menos de um segundo. Ninguém consegue ler. Somente li porque congelei a tela no frame exato da frase. Recomendo aos leitores da coluna que observem ao longo da semana quando estiverem em frente a um aparelho de TV as propagandas que pretendem vender automóveis. Se conseguirem ler, postem aqui nos comentários. Quem conseguir ler ganha o prêmio de “super-humano”, pois tem “olhos de águia”, como dizia meu falecido sogro.

Acessibilidade e legibilidade zero: proposital? Acredito que sim. As empresas são obrigadas por lei federal a lançar campanhas educativas. É uma tarefa que mostra ao mundo comportamentos e atitudes civilizados por meio da aplicação dos princípios que regem as condutas de responsabilidade socioambiental do setor. Recomendo fortemente que roteiristas mais jovens sejam incluídos na elaboração das peças publicitárias. Criativos como são, apresentariam motoristas civilizados e gentis no trânsito, priorizando seres humanos em travessias por princípio de conduta.  Certamente, as mensagens expostas utilizariam letrinhas visíveis e com tempo de leitura viável para qualquer criança em fase de alfabetização. Que tal?

Apenas para ilustrar a situação insegura que pedestres enfrentam no trânsito, o maior responsável pelas mortes de crianças entre 5 e 11 anos em 2020 foram os sinistros causados pelas ocorrências de trânsito como atropelamentos. Foram 426 contra 297 causados pela Covid-19. São mortes evitáveis: campanhas de esclarecimento para condutores de veículos de um lado, e sobre a obrigatoriedade da vacinação do público infantil aos pais e responsáveis por outro poderiam evitar esta situação horrível para os dois casos. O que esperam os ilustres políticos para liderar a necessidade de veiculação de campanhas educativas para os motoristas? Ao invés de contar a redução de mortos em sinistros nas ruas, os órgãos de trânsito, secretarias estaduais, municipais e nossos representantes políticos deveriam fazer a lição de casa e contar “vidas”. Falta vontade política? Má-fé? O leitor pode tirar suas conclusões a partir da realidade de sua cidade.

Enquanto empresas incluem mensagens neutras adequadas para uma realidade educacional finlandesa sugeridas pelo CONTRAN (mesmo por imposição), governos não fazem muito esforço para reverter a situação. São lentos, procrastinam. Seus membros ainda persistem na visão que prioriza o trânsito, circulação e fluidez nas cidades brasileiras facilitando a vida do condutor de veículos e não dos pedestres. A ideia da cidade dos carros persiste. A cidade das crianças e ciclistas atropelados e mortos, também.

ENQUETE - HELENA DEGREAS

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