Até que ponto queremos mudar nosso estilo de vida para disponibilizar água para as futuras gerações?

Ao esbanjar água dos lençóis freáticos, prejudicaremos não apenas aos brasileiros, mas todos aqueles que convivem em nossa ‘espaçonave’

  • Por Helena Degreas
  • 26/10/2024 09h00
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LUIS MOURA/WPP/ESTADÃO CONTEÚDO Vista da represa de Nazaré Paulista, no interior de São Paulo, nesta terça-feira Represa de Nazaré Paulista, no interior de São Paulo, que compõe o Sistema Cantareira

Observo a senhorinha com sua mangueira estrategicamente posicionada, “varrendo” as folhas na calçada com água enquanto discorre sobre as mudanças climáticas com a vizinha. Novos edifícios multifuncionais, bombeiam as águas subterrâneos de aquíferos que ninguém vê sobre as sarjetas, mostrando ao mundo o quão indesejável é o tal líquido incolor e inodoro extraído do solo. Cena digna de um documentário sobre a “insustentabilidade” e a insanidade urbana em tempos atuais.

Enquanto isso, a poucos metros dali o encarregado da obra do opulento condomínio “Les Fontaines Eternelles” (um nome que, claro, não poderia evocar nada além de uma inesgotável abundância de água) esbanja o recurso com uma desenvoltura invejável. A nata das betoneiras é lavada com a mesma tranquilidade que um sheik árabe esbanja petróleo. Caminhões, calçadas, vias — nada escapa ao cuidado do rapaz, que transforma o canteiro em um verdadeiro spa urbano, com direito a banhos luxuosos. A água, extraída dos próprios poços artesianos do condomínio (porque, afinal, quem precisa se preocupar com economia?), desce livremente pela sarjeta, levando, ou lavando, talvez, qualquer resquício de responsabilidade ecológica e, junto com ele, além da minha sanidade, minha esperança de um mundo onde o bom senso não seja um recurso tão escasso quanto a própria água.

Recentemente concedi uma entrevista ao SBT sugerindo aos gestores públicos, empresas e pessoas a adoção de diretrizes ecologicamente sustentáveis em suas ações, programas e planos. Chamei o Planeta Terra de “Espaçonave Terra” utilizando a expressão cunhada e popularizada lá atrás, na década de 1960 por Buckminster Fuller (arquiteto, escritor, designer, inventor, filósofo e futurista americano, nascido em 12 de julho de 1895) ao descrever o lugar onde moramos como um sistema fechado com recursos finitos onde a humanidade precisa agir de forma responsável para garantir sua própria sobrevivência. 

Imagine um avião (podemos substituir por espaçonave Terra) em pleno voo, com combustível limitado e sem possibilidade de reabastecimento. Assim é o cenário da água no nosso planeta. Cerca de 97,5% da água disponível é salgada, inadequada para o consumo ou irrigação. Dos 2,5% de água doce, a maior parte (69%) está presa em geleiras, inacessível para uso humano. Apenas 1% está nos rios, enquanto 30% são águas subterrâneas, armazenadas em aquíferos. Essas águas subterrâneas são nossa “reserva de combustível” vital, pois representam a maior fonte utilizável de água doce. Se não gerenciarmos bem esse recurso limitado, como o piloto que calcula com precisão o combustível de um voo, corremos o risco de um colapso iminente de nossos sistemas de abastecimento hídrico. A quantidade total de água no Planeta Terra é fixa, mas sua distribuição é altamente desigual. Ao esbanjar água dos lençóis freáticos, prejudicaremos não apenas aos brasileiros, mas todos aqueles que convivem em nossa espaçonave.

Os aquíferos, reservatórios subterrâneos que guardam água essencial para a vida, estão sendo superexplorados em diversas partes do mundo. Um estudo de Jasechko (Nature Geoscience Journal, 2023), professor da Bren School of Environmental Science and Management, revelou que o aquífero Ascoy-Soplamo, na Espanha, está perdendo água a uma taxa alarmante de 2,95 metros por ano. Essa situação crítica ilustra o desequilíbrio do ciclo global da água, vital para a saúde dos ecossistemas, a prosperidade econômica e o bem-estar das comunidades, como alertado pela Comissão Global de Economia da Água em seu relatório de 2023. A exploração excessiva dos aquíferos, combinada com as mudanças climáticas e a má gestão dos recursos hídricos, ameaça a disponibilidade de água doce no planeta, colocando em risco a vida como a conhecemos.

O desequilíbrio resulta de décadas de exploração intensiva da água e do solo, agravado pela crise climática. A maneira como utilizamos os recursos naturais do planeta tem interrompido o ciclo natural da água — evaporação, condensação e precipitação — afetando cerca de 3 bilhões de pessoas, prejudicando colheitas e comprometendo a recarga dos aquíferos. O relatório alerta que, sem intervenções e mudanças urgentes, o risco de escassez aumentará, ameaçando metade da produção global de alimentos e o crescimento econômico, especialmente em países de menor renda.

Esse cenário também se reflete nas práticas cotidianas e na cultura de consumo urbano. Em uma observação comum, moradores utilizam água para tarefas que poderiam ser realizadas de maneira mais sustentável, como “varrer” calçadas. Ao mesmo tempo, condomínios de luxo utilizam água subterrânea para limpezas em larga escala, extraindo recursos de poços artesianos sem a devida cautela. Essas práticas sugerem uma percepção cultural de que a água é infinita, contribuindo para o uso inadequado e excessivo do recurso. Até que ponto estamos interessados em mudar nosso estilo de vida para garantir a sustentabilidade do planeta e a disponibilidade de água para as futuras gerações?

A urgência em rever essa percepção é clara para cientistas e ambientalistas. Buckminster Fuller, arquiteto, escritor, designer e futurista americano dos anos 1960, descreveu a Terra como uma “Espaçonave” com recursos finitos, enfatizando a necessidade de uma gestão responsável. Em paralelo, especialistas comparam a água doce à “reserva de combustível” de um voo, limitada e necessitando uso planejado e responsável. Essa comparação aponta para a finitude dos recursos hídricos, já que apenas 2,5% da água no planeta é doce e utilizável, estando grande parte dela em aquíferos subterrâneos.

No Brasil, os efeitos da escassez de água são particularmente evidentes no agronegócio. Culturas dependentes de irrigação, como soja e milho, enfrentam custos mais altos devido à diminuição das águas subterrâneas. A pecuária, especialmente em regiões semiáridas, também sofre com a escassez de água, impactando o consumidor final e encarecendo os produtos agrícolas (

Outro fator que intensifica o problema é a urbanização acelerada, que contribui para o crescimento de áreas impermeáveis, como ruas e calçadas, impedindo a infiltração da água da chuva e reduzindo a recarga dos aquíferos. Em cidades brasileiras como São Paulo, esse processo é intensificado pela poluição e pela falta de redes de monitoramento robustas. Estudos em outras regiões, como México e Índia, também mostram que a expansão urbana afeta negativamente a renovação das águas subterrâneas. Em algumas cidades, como Bangkok e Tóquio, intervenções governamentais bem-sucedidas têm mostrado resultados positivos, reforçando a importância de uma gestão equilibrada.

O uso de tecnologias de monitoramento, como sensoriamento remoto e sistemas de informação geográfica (GIS), pode apoiar a formulação de políticas mais eficazes, oferecendo uma visão detalhada dos níveis de água subterrânea e das áreas críticas de recarga. No Brasil, essas ferramentas ainda precisam ser incorporadas à gestão pública para gerar dados e informações que sustentem decisões políticas mais integradas e eficientes na gestão hídrica, especialmente em grandes centros urbanos.

A transformação cultural e a conscientização sobre o uso da água são essenciais para evitar o agravamento da crise global de água doce. Uma abordagem mais eficaz para promover o uso sustentável dos recursos hídricos passa pela adaptação das práticas à realidade urbana em tempos de escassez. Isso implica reconhecer a necessidade de uma nova gestão dos aquíferos, com uma mudança cultural que trate o ciclo da água como um “bem comum planetário,” incentivando práticas mais sustentáveis no setor público, no âmbito corporativo e na esfera privada. Para alcançar esses objetivos, é fundamental desenvolver políticas integradas, investir em tecnologias avançadas e fomentar a colaboração entre sociedade, governo e empresas, assegurando a segurança hídrica para o futuro.

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.

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