Cidades Inteligentes? Para quem? Para quê?

São Paulo foi eleita a primeira cidade entre as 10 mais conectadas do Sudeste, entre as com mais de 500 mil habitantes, mas disponibilização de dados por meio da tecnologia está distante da realidade da população

  • Por Helena Degreas
  • 24/05/2022 10h00 - Atualizado em 24/05/2022 12h46
Banco de imagens/Pexels Avenida Paulista Movimento intenso de pessoas na Avenida Paulista, no centro de São Paulo, maior cidade do Brasil

Recentemente, solicitei alguns dados pelo Portal da Transparência da Prefeitura de São Paulo para obter informações sobre o conjunto de praças e demais áreas verdes existentes no bairro de Pinheiros, área central da cidade. As informações eram bem simples: endereço, nome da praça, endereço, área do local e menção à existência de equipamentos, mobiliários e, eventualmente, esculturas e demais objetos de arte. Informações que qualquer sub-prefeitura deveria ter pois cabe a ela, quando não adotadas por pessoas e empresas, a gestão da sua manutenção: se a área é grande, quantas colaboradores serão encaminhados para realizar a varrição? Se a área de gramado é extensa, quantos colaboradores serão enviados e por quanto tempo? Parece simples, mas não foi o que aconteceu.

Para minha surpresa, recebo um e-mail informando que, de acordo com “o preconizado no artigo 16, inciso III, do decreto de nº 54.779/2014 que regulamenta a Lei de Acesso à Informação de número 12.527/2011, não serão atendidos os pedidos que exijam trabalhos adicionais…”. Ou seja: para que Portal da Transparência? Entendo que qualquer informação adicional ao site da Prefeitura de São Paulo demanda, já que a informação não está ali, que ao menos um servidor se mova: primeiro pense onde buscar, depois envie e-mail solicitando o serviço. Pela insensatez da resposta do chefe de gabinete da sub-prefeitura, qualquer informação que demande uma busca ou pesquisa onde ele presta serviços, será enquadrada no tal artigo 16, pois trata-se de trabalho “extra” de um servidor público. Minha sugestão é que ele próprio faça o serviço ou busque saber onde encontrar uma informação tão óbvia quanto esta. Certamente, ele encontrará a minha demanda praticamente na sala ao lado.

Para além da falta de vontade do chefe de gabinete em buscar a informação que existe em planilhas provavelmente empilhadas sobre alguma mesa ou em alguma pasta digital esquecida em um computador, pensei: para que serve o Portal 156 e o Portal da Transparência numa cidade que, de acordo com os resultados de rankings nacionais e internacionais, colocam a cidade de São Paulo no topo das Smart Cities, ou ainda, Cidades Inteligentes? Não reclamo dos portais: apenas lamento o fato de que, ao final do processo longo, uma pessoa defina o que um cidadão deve ou não saber sobre a gestão de sua cidade. Daí pergunto: cidade inteligente para quem e para quê?

O conceito de cidades inteligentes surgiu lá pelo final do século XX e é caracterizado pelo uso intenso de Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC’s) para melhorar a qualidade de vida dos cidadãos. A disseminação do uso da internet, criou conexões globais que permitem o compartilhamento instantâneo de sons, mensagens, imagens, informações, dados, enfim, entre diversos dispositivos e que são amplamente utilizados nas indústria, na agricultura, na áreas da saúde, educação e serviços. Quem utiliza smartphones, tablets, computadores para trabalhar, estudar, assistir filmes e divertir-se com games e jogos, sabe que a internet permite conectar-se com o mundo todo e com pessoas em qualquer lugar.

Cidades Inteligentes são aquelas em que prefeitos e demais membros do corpo técnico (concursados ou politicamente indicados) melhoram a governança pública viabilizando o uso de tecnologia para permitir uma maior e melhor interação e envolvimento dos cidadãos nos problemas dos locais em que os cidadãos vivem e trabalham. Quando a interação entre cidadão e governo ocorre, as ações provenientes de políticas públicas e programas têm mais chance de sucesso, gera confiança na administração pública e reduz o desperdício de recursos humanos, técnicos e financeiros. Cooperação e co-design são palavras que vem sendo cada vez mais utilizadas por cidades que investem pesado em “governança pública inteligente”. Não preciso explicar o porquê da minha solicitação: bastaria atendê-la. Sou pesquisadora na área de urbanismo e planejamento ambiental. Uso dados para conhecer a cidade: não uso impressões ou boatos. Pesquisa básica é isso. Ciência, em outras palavras.

Deixo aqui o exemplo de uma cidade europeia que investe pesado em TIC’s e co-design urbano a partir do uso de informações geradas por sensores e criadas a partir dos cidadãos. A cidade de Santander, localizada no norte da Espanha, é um exemplo de boas práticas de governança pública. Há alguns anos, a cidade utiliza mais de 3.000 módulos GPRS e 2.000 etiquetas conjuntas RFID/código QR implantados tanto em locais estáticos (postes de iluminação pública, fachadas, paradas de ônibus, sistema viário, lixeiras) como a bordo de veículos móveis (ônibus, táxis). Lixeiras? Sim, pois os sensores informam aos locais de coleta se elas precisam ser esvaziadas. Pois é. Não é um sistema caro. É um sistema inteligente.

Ao incorporar sensores, softwares e outros dispositivos a objetos físicos em postes de luz e fachadas por exemplo, os dispositivos geram dados reais captados em tempo real para fornecer e enviar informações referentes a medições de diferentes parâmetros ambientais, como temperatura, produção de CO2 (dióxido de carbono), ruído, luz e presença de carros. O mesmo ocorre com dispositivos móveis que, ao serem instalados em veículos de transporte público e viaturas policiais, permitem recuperar dados em pontos mais distantes da cidade. Por sua vez, a irrigação de parques e jardins conta com cerca de 50 dispositivos implantados em duas zonas verdes da cidade permitindo que a prefeitura monitore a irrigação, umidade, temperatura, pluviômetro, anemômetro dos locais com o objetivo de tornar a irrigação eficaz e evitar o desperdício de água. Até vagas livres de estacionamento de carros nas ruas são disponibilizadas online. Semáforos, são capazes de ler o número de pessoas nas calçadas, regulando o tempo semafórico exato para a travessia com segurança de todos.

A realidade aumentada e o sensoriamento participativo destacam-se dentre as ações de gestão eficiente e eficaz para o atendimento do cidadão. Ao utilizar telefones celulares para informar problemas urbanos, coordenadas de GPS alimentam a plataforma pública que identifica o local e envia o problema em tempo real para a central de monitoramento urbano. Etiquetas com códigos QR foram distribuídas em diversos pontos turísticos como praças, parques, museus e centros culturais. Ao serem acionadas, vídeos, podcasts, imagens e demais formas de comunicação permitem que o cidadão conheça o local ampliando a sua experiência.

Na cidade onde moro, sons altos originários de bares e clientes pouco civilizados além de construtoras que realizam suas obras quando bem entendem, ainda dependem de petições e reclamações públicas escritas, comunicadas por voz ou, quando não, enviadas por carta pelos correios para as centrais de atendimento do cidadão. Isso mesmo: cartas. Ou seja: o barulho que não me deixa dormir, vai continuar sem solução para aquele momento. Em algum momento ao longo da minha vida, será enviada uma viatura de fiscalização que, provavelmente, não encontrará problema algum semanas depois do ocorrido.

Já por aqui, nas cidades brasileiras, o cidadão ainda depende da intervenção humana predominantemente. Entendo que trata-se de um processo. Um longo processo que exige a mudança de mentalidades que, por sua vez, irá gerar as condições para a locação de recursos técnicos e financeiros para melhorar a vida do cidadão. O ranking Connected Smart Cities, criado pela Necta e Urban Systems, classificou pela quarta vez, a cidade de São Paulo como a primeira cidade entre as 10 mais conectadas da região Sudeste, de cidade com mais de 500 mil habitantes. (Fonte: Prefeitura de São Paulo). Situações como a que recentemente vivenciei no atendimento de um órgão público por meio do Portal da Transparência demonstram que o conceito de governança inteligente associado à disponibilização de dados por meio do uso da tecnologia e o envolvimento dos atores locais encontra-se ainda muito distante da realidades da população e, pelo que parece, da vontade dos agentes públicos como prefeitos, vereadores e afins. Minha cidade pode até ser conectada, mas inteligente, smart, interativa, eficaz na solução de problemas que atormentam o cidadão, certamente não é. Tem ainda muito trabalho e investimento em boas práticas de governança, criação, gestão, armazenamento e tratamento de dados pela frente para uso nas decisões políticas de agentes públicos.

Tem alguma dúvida ou quer sugerir um tema? Escreva para mim no Instagram: @helenadegreas.

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.

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