Clube do Bolinha: quando meninas não entram, as desigualdades urbanas se perpetuam

Pesquisas recentes apontam números que retratam a desigualdade de oportunidades para o púbico feminino, em especial nos espaços públicos

  • Por Helena Degreas
  • 01/11/2022 09h00
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Freepik Mulheres assistem a vídeo no celular e riem em espaço público Meninas e mulheres não usam os espaços públicos na mesma medida que meninos ou homens.

Para aqueles que, como eu, são fãs de HQ, Bolinha foi um personagem criado pela Dell Comics em 1945. Além de ser um menino metido a machão, também era mimado, orgulhoso, egocêntrico e comilão. Como presidente do Clube dos Meninos, seu lema era: “Menina não entra”. E, pelo resultados das últimas eleições para a Câmara dos Deputados, meninas ainda levarão um tempo bem longo para poder entrar e decidir pautas públicas de seu interesse. Dados das últimas eleições mostraram um país em que as mulheres eram a maioria das pessoas aptas a votarem (52,65%). Apesar dos incentivos e cotas destinados por lei às candidaturas femininas, elas ainda representam apenas 17,7% das cadeiras da Câmara. De cada dez candidatos eleitos, oito deles foram eleitos e transformam a Casa legislativa numa versão atualizada do Clube dos Meninos, presidido, atualmente, por um representante contemporâneo do Bolinha. A pequena presença feminina nas decisões de todas as esferas de poder se faz presente na maneira como o planejamento das cidades e estados tratam as questões relacionadas a este público. 

Mais do que a aplicação de um modelo de planejamento urbano, cidades são estruturas em processo de mudança e que materializam sonhos coletivos, dizia o urbanista Jaime Lerner em suas aulas. O relatório Vinnova Innovation for Gender Equality Projecto Cities for Girls Cities for All (Cidades para Meninas, Cidades para Todos, tradução livre) apresenta os resultados de uma pesquisa lançada em 2021 e que nasceu da colaboração entre o UN-Habitat e a a Swedish Innovation Agency Vinnova, com contribuição da Block by Block Foundation, do escritório White Architects e da Swedish Union of Tenants and MethodKit.

A HerCity Toolbox coloca meninas e mulheres no papel de especialistas no desenvolvimento de cidades inclusivas e sustentáveis por meio de uma ferramenta que viabiliza a integração da participação de meninas em iniciativas para o desenvolvimento urbano. A plataforma digital é desenvolvida em sistema aberto, e seus impactos estão presentes em 350 cidades, por meio de 250 iniciativas em 100 países localizadas na África, Oriente Médio, América Latina, Ásia e Europa. Nove blocos orientam o processo de planejamento participativos das cidades sob a perspectiva de meninas. Ferramentas digitais como listas de verificação, calendários, agendas, manuais, formulários, placas, aplicativos, modelos, pesquisas e serviços de visualização foram integrados a ferramentas como Jamboard, KoBo Collect, MethodKit, Minecraft, SketchFab, SketchUp, mapas interativos entre outros, ajudam a equipe, também composta por profissionais multidisciplinares, a alcançar os resultados esperados. A ferramenta simula três etapas pelas quais passam planejamento urbano, como a avaliação, design/proposição e a fase de implementação.

Melhoria das condições de mobilidade urbana com enfoque na produção de cidades compactas, cujo acesso às necessidades cotidianas possa ser realizado a pé ou por meio de viagens curtas, com uso de bicicletas e transporte público seguro com tarifas mínimas. Nas questões ambientais, as aplicações resultaram em cidades vegetadas e floridas, inclusão de fontes, chafarizes e lagos, melhoria da qualidade do ar com redução da poluição por meio de uso de energias provenientes de recursos renováveis (como painéis solares), investimentos em agricultura urbana, além de espaços públicos iluminados, sinalização viária e ampliação do número de travessias para pedestres, utilização de recursos renováveis em edifícios e frotas veiculares. As propostas de planejamento para uma sociedade igualitária mostram que a existência de uma rede de infraestruturas e equipamentos públicos como bibliotecas, palcos e teatros ao ar livre, a previsão de locais para encontro e playgrounds, banheiros públicos, locais para a instalação de feiras, quiosques e ambulantes, disponibilização de rede de Wi-Fi, sinalização voltada ao pedestre, além de investimento em arte urbana melhoram a vida não apenas de mulheres e meninas, mas de todos. 

Um bilhão do mundo de pessoas no mundo vive em assentamentos informais. Aqui no Brasil, por absoluta incapacidade e falta de vontade políticas das autoridades em criar programas de acesso à terra e financiamento de habitação à população de baixa renda, as cidades dividem seus habitantes entre aqueles que têm direito a toda infraestrutura e equipamentos públicos e aqueles que não têm direito e acesso a nada, literalmente. Habitações subnormais são materializadas em periferias distantes dos centros cujos habitantes, em pleno século 21, ainda não têm direito a água, coleta de esgoto e resíduos, energia, infraestrutura mínima para viabilizar alguma mobilidade social. Neste grupo, as meninas e mulheres jovens destacam-se por serem as mais vulneráveis e sofrerem os impactos de cidades que não foram planejadas para elas. Pesquisas recentes publicadas pela Rede Nossa São Paulo e pela OXFAM Brasil apontam números que retratam a desigualdade de oportunidades para mulheres, em especial nos espaços públicos. São elas que, apesar de sustentarem suas famílias, ainda são responsáveis, predominantemente, pelos afazeres domésticos, pelos cuidados dedicados aos filhos e pessoas mais velhas, desenvolvendo várias atividades ao longo do dia. Ao pedirem por cidades com mais iluminação, travessias, pistas cicláveis, calçadas mais largas, transporte público com tarifas acessíveis, praças, parques, escolas e equipamentos de saúde próximos aos seus lares, evidenciam como nossas cidades são disfuncionais para mais da metade da população brasileira. Os resultados apontados pelo HerCity não são novidade e apenas refletem que, em maior ou menor intensidade, meninas e mulheres não usam os espaços públicos na mesma medida que meninos ou homens. E mais: que cerca de 80% dos espaços públicos podem ser dominados por meninos e que meninas, expressam nas entrevistas, se sentem mais inseguras e excluídas.

Cidades pensadas por todos são planejadas para todos. Nelas, a representação política está proporcionalmente distribuída por perfis diversos nas diversas esferas de poder. Quando apenas um grupo participa das discussões que afetam a vida dos demais grupos, é natural que as práticas de planejamento e a consequente materialização de suas políticas em projetos urbanos reflitam os interesses, perspectivas e a visão de mundo do grupo dominante. Plataformas que viabilizem e ampliem a participação de grupos excluídos, vulneráveis e minorias da tomada de decisões que afetam a vida cotidiana colaboram no processo de inclusão e sustentabilidade das cidades. A prosperidade urbana anda lado a lado com a participação na construção de políticas públicas. Se queremos cidades sustentáveis e inclusivas, meninas entram, sim!

Tem alguma dúvida ou quer sugerir um tema? Escreva para mim no Twitter ou Instagram: @helenadegreas.

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.

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