Como a mudança climática coloca em risco a vida da população mais pobre

Mais de 3,3 bilhões de pessoas correm risco de morte por insegurança alimentar e física por consequência de estiagens longas, ondas de calor intensas, tempestades, vendavais e aumento do nível do mar

  • Por Helena Degreas
  • 08/03/2022 10h53 - Atualizado em 08/03/2022 13h02
Filipe Bispo/Fotoarena/Estadão Conteúdo - 19/01/2022 Pessoas tentam se locomover de barco durante enchente em bairro de Marabá Mais de 3 mil famílias ficaram desalojadas após enchente em Marabá, no Pará

Sinto saudades do tempo em que as chuvas de verão molhavam as roupas penduradas no varal, enfurecendo minha mãe que, em resposta, praguejava ferozmente em direção aos céus. Anos depois, a terra da garoa, da chuva fina incômoda, transformou-se numa série de tempestades que resultam em mortes e perdas materiais. A tormenta associada a um vendaval, raios e trovões que observo pela janela da sala enquanto escrevo a coluna trouxe alagamentos e quedas de árvores. Prejuízos materiais resultantes da falta de energia ou de eventual queda de árvores daqueles habitantes que, residentes em áreas centrais, sofrem alguns incômodos. Embora toda a população do planeta esteja enfrentando as consequências das mudanças climáticas, é a metade mais pobre, ou seja, mais de 3,3 bilhões de pessoas, que, vulneráveis, correm risco de morte por insegurança alimentar e física consequente de estiagens longas, ondas de calor intensas, tempestade, vendavais e aumento do nível do mar. 

O Relatório de Avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), divulgado no final de fevereiro, retirou do seu texto original a expressão “injustiça climática” com o objetivo de não melindrar os representantes de países cuja matriz energética poluidora (fóssil), associados à cultura de consumo exacerbada, são responsáveis diretos pela emissão de gases de efeito estufa para além do desejado e que hoje aquecem o planeta Terra. Entre outras alterações, as expressões “países mais vulneráveis” e “países menos vulneráveis” foram substituídas por termos mais abrangentes como “regiões” com o objetivo de evitar a responsabilização individual de chefes de Estado. Em seus 18 capítulos, o relatório descreve exemplos bem-sucedidos que incluem programas sociais para a constituição de cidades mais justas, resilientes e equitativas. É bem mais do que construir infraestrutura verde e adotar boas práticas de planejamento ambiental. A resiliência urbana e a sustentabilidade tratam de questões econômicas, urbanas e de inclusão da população em programas que visam à proteção social das populações.

Os cidadãos brasileiros que moram em áreas carentes de infraestrutura implantada para a drenagem e manejo das águas pluviais urbanas e que não dispõe de elementos de infraestrutura verde que viabilizem a permeabilidade do solo (de biovaletas, jardins de chuva, canteiros pluviais, cisternas e grades verdes para reter e absorver os locais alagadiços em sistemas viários) sofrerão as consequências com maior intensidade do que os moradores de áreas centrais. O clima é injusto quando avaliados os impactos no território. Afeta mais a população pobre. A ausência das três esferas de poder na atuação com vistas a evitar os desastres coloca-os na incômoda posição de corresponsáveis pelas mortes e perdas materiais. Os riscos socioambientais são conhecidos há mais de dez anos e estão disponíveis no site do Cemadem (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais) e do IBGE. São dados públicos estudados e analisados em ambientes universitários. Não tem novidade nenhuma. As soluções estão lá, descritas. As ações públicas, por sua vez, se é que existiram, não foram eficazes para evitar as calamidades que presenciamos a cada tempestade. 

Não são apenas os atuais representantes políticos eleitos pelo povo os responsáveis. Estão todos lá, há décadas. Foram eleitos e reeleitos por nós, cidadãos. Historicamente, o processo de planejamento urbano privilegiou a construção da desigualdade e da segregação nas cidades. Longe das áreas centrais, bairros inteiros foram autoconstruídos sob a vista grossa do poder público, cuja ausência na promoção de políticas habitacionais e sociais colaborou na construção de cidades inteiras à margem da lei. Diante da situação, prosperou um mercado imobiliário informal (e ilegal) por meio da grilagem de propriedades alheias, formando imensas áreas periféricas que, em pleno século XXI, ainda carecem de infraestrutura básica. Neste contexto, o prefácio escrito por Leandro Roque de Oliveira, mais conhecido pelo seu nome artístico Emicida, para o livro “São Paulo: O Planejamento das Desigualdades”, escrito pela urbanista Raquel Rolnik, é esclarecedor ao relatar, em um dos seus trechos, o processo de expulsão capitaneado pelo poder público de moradores que, ainda pagando por seus terrenos, haviam sido ludibriados por uma empresa que não era a proprietária do terreno. A documentação fraudulenta apresentada pelos moradores aos agentes públicos, não impediu a Polícia Militar de derrubar casa por casa, destruindo vidas e famílias.

É justamente este o foco do problema. Não é possível ignorar a pobreza que se esparrama pelos territórios urbanos. Não é possível entender que a distribuição da infraestrutura básica, cuja implantação é de responsabilidade do poder público, escolha as regiões mais ricas, em detrimento da imensa maioria que reside nas regiões mais pobres, para realizar serviços básicos como o de saneamento. O relatório do IPCC reitera que quando políticas públicas aprimoram as ferramentas de proteção social e são construídas para a melhoria das condições de vida dos cidadãos, riscos sociais e ambientais deixam de existir reduzindo as mortes e perdas materiais. É simples assim. O relatório acrescenta ainda que a implantação de infraestrutura de saneamento básico, água potável e equipamentos de saúde associados à parceria de associações locais para a tomada de decisão, melhoram a resiliência climática local. Dotados de infraestrutura, os bairros regeneram e retornam à condição anterior ao evento climático. Os desastres são evitados.

Recentemente, a Prefeitura de São Paulo incluiu em seu Programa Habitacional uma licitação para a aquisição de 5 mil apartamentos prontos destinados a suprir a demanda de habitação social para a população com renda bruta mensal de até 6 salários mínimos. Embora a iniciativa venha em boa hora e atenda a necessidade imediata de algumas famílias, o programa não contempla alternativas para a população que mora em situação de risco de forma clara. Os programas habitacionais, quando acompanhados de ações mais amplas, que visam à melhoria de programas de proteção social como transferência de renda, implantação de infraestrutura e equipamentos públicos — além da revisão de políticas públicas de segurança social — são mais eficazes. Habitamos em casas, mas nossas vidas dependem das cidades e das relações sociais.

A mensagem apresentada no relatório do IPCC deixa claro que as mudanças climáticas agravam as desigualdades, perpetuam a pobreza e segregam, nos territórios periféricos, grupos vulneráveis. Ou os governos dos três entes federativos se unem para construir políticas públicas para a realização de programas sociais, habitacionais e de implantação de infraestruturas em parceria com empresas e associações locais ou, em breve, além das mortes por deslizamentos e inundações, serão acrescidas as mortes provocadas pela insegurança alimentar extrema (cerca de 19 milhões em 2020), ou ainda, a população que, por não ter renda proveniente do mercado de trabalho nem condições de plantio, está fadada morrer de fome. Revejam suas prioridades, senhores governantes e demais representantes públicos. Incluam em seus mandatos a vontade política para fazer a diferença na vida das populações mais sofridas.

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.

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