Dá para usar um canteiro central como praça?

Se as praças, por definição, são espaços livres que se materializam pelo ir e vir, pelos encontros e desencontros, como pode uma obra estreita acolher a vida pública?

  • Por Helena Degreas
  • 14/06/2022 11h00 - Atualizado em 14/06/2022 23h15
Arquivo Pessoal/Helena Degreas Canteiro em São Paulo O primeiro canteiro central é a Praça Coreia e o segundo, logo adiante, é a Praça Riolândia, ambos em São Paulo

Somos seres sociais, é a partir do relacionamento com outros indivíduos e grupos que se formam nossas opiniões, crenças e valores, um mundo interno que se expressa visando estabelecer uma interação. É do contínuo acréscimo de novos conteúdos e informações originários do mundo externo que realiza-se o processo de transformação do ser humano e da sociedade. Se partimos do pressuposto de que o espaço público é todo aquele que pode ser livremente utilizado por indivíduos ou grupos – contextualizados os devidos comportamentos compatíveis com os códigos de conduta e valores das comunidades locais e dos diversos grupos sociais, é possível afirmar o espaço público representa o local onde a vida social dos cidadãos se manifesta.

As praças, por sua vez, são espaços livres públicos que acolhem a vida e a expressão social, materializando pelo ir e vir, pelos encontros e desencontros, pelas paradas, conversas, olhares e manifestações diversas, as relações entre os indivíduos e grupos responsáveis pelos espaços, usos e atividades, tomando a forma daqueles que as criaram. Tornam-se, portanto, parte intrínseca e indivisível das cidades. Em seu site, o programa “Adote uma Praça” da Prefeitura de São Paulo informa que uma praça é um “espaço social para brincadeira das crianças, o namoro, o ponto de encontro de pessoas e abriga dezenas de espécies de pássaros e plantas. Um lugar para viver uma cidade mais humana e gentil. Além disso, contribuem para a purificação do ar e equilibram o microclima. Reduz o calor, diminui a velocidade dos ventos, melhora a umidade do ar”.

Em outras palavras, os espaços livres são constituídos não apenas pelos volumes edificados que lhes dão a forma, bem como são afetados direta e profundamente por todas as atividades que neles se realizam. Com o objetivo de viabilizar uma relação equilibrada entre os diversos agentes e atores sociais, o Estado por meio de diversas instâncias, cria regulamentações de uso, de ocupação do solo e do território visando à compatibilização entre atividades e propriedades quer públicas, quer privadas e a sociedade. Suas formas espaciais são importantes mas, na imagem que ilustra a coluna, o que aconteceu? Como pode um canteiro central estreito e longo acolher a vida pública? Chama-se praça, mas sua forma inviabiliza o exercício de qualquer atividade social como preconiza o programa “adote uma praça”. Sua forma dificulta, e muito, que um cidadão possa usar seu tempo livre tomando sol, lendo um livro, levando a criança para brincar com os amigos, socializando-se em uma área pública chamada praça.

No bairro onde moro, dos mais de 190 espaços públicos que tem a zeladoria realizada pela subprefeitura, cerca de 90 deles recebem a designação oficial de praça. Os demais, recebem diferentes designação e podem ocorrer em locais como rotatórias, alças de sistema viário quando não em escadarias e passarelas. Nossas cidades, foram sendo construídas ao longo dos séculos e estas formas e alguns hábitos culturais permanecem até hoje. As praças que surgiram ao longo do período colonial brasileiro, eram o coração da vida urbana. Lá ocorriam celebrações, o mercado, as festas religiosas e profanas, o abastecimento de água nos rios e fontes, as feiras e até o plantio de alimentos, o abastecimento de água para os animais. De certa maneira, a concentração e a livre circulação do público passam a ser organizados pelo tratamento e projeto dos jardins, opondo-se à figura da praça onde a vida pública é espontânea. Surge, no imaginário brasileiro, a figura da praça-jardim com seus caminhos por vezes sinuosos, canteiros ajardinados, fontes e quiosques.

 

Ilustração de professor

Ilustração criada pelo Prof. Dr. Silvio Soares Macedo em 1999 durante uma reunião de pesquisa em que discutíamos o conceito de praça no imaginário popular brasileiro. O tema da coluna de hoje foi inspirado num texto que ele e eu escrevemos ao longo de 2012 e permanece atual.

No decorrer do século XX, as cidades passam por transformações urbanísticas relevantes que alteram profundamente as configurações, programas e tipos de espaços livres tanto públicos como privados. Para atender um cidade populosa, produtiva e motorizada, o planejamento urbano funcionalista propõe-se a atender as necessidades de lazer, circulação, habitação e trabalho. A praça ajardinada destinada a contemplação e circulação que está na memória dos mais velhos, passa a receber um “programa de atividades” incorporando a “recreação ativa” com ênfase em esportes e playgrounds. Mais tarde, são incorporadas as atividades de caráter cultural com palcos e anfiteatros ao ar livre. Muda o desenho: a praça deixa de ser local apenas para a circulação e apreciação dos elementos vegetais e de água e passa a ser um espaço livre que acolhe a convivência e a permanência das pessoas. É nessa época também que inúmeras praças começam a ter seu espaços “esquartejadas” para atender aos apressados motoristas e seus veículos: morre o cidadão e nasce o pedestre.

As praças no início do século XXI passam por um processo de transformação. Recentemente, são palco para a retomada dos ajardinamentos, desta vez com foco na permeabilidade e na vegetação para fins de manutenção da qualidade ambiental e estética voltada ao cidadão buscando construir uma cidade voltada ao bem-estar das pessoas por meio da requalificação de áreas residuais.

É neste contexto que inúmeros espaços livres públicos precisam ser avaliados hoje. São áreas sem nenhuma função clara, sem projeto de arquitetura ou urbano e que necessitam de requalificação formal e funcional urgentes para que possam ser apropriados pelo público. Para além dos modelos de jardinagem e arborização apresentados em manuais municipais, os órgão públicos municipais devem atuar em duas frentes: na regulamentação da Lei 16.212/2015 (alterada em 2018) e que dispõe sobre a participação no processo de gestão da população de um lado e, de outro, na requalificação a partir de projetos de arquitetura com programas e atividades definidas pelas populações que utilizarão o lugar.

A vida pública ocorre lá fora, na rua e não dentro dos muros e fortalezas de condomínios de alto padrão ou de shoppings e clubes privados. Definir resíduos de sistemas viários e demais equívocos e anomalias espaciais que foram surgindo ao longo do processo de uso e ocupação do solo urbano como local de encontro, não é possível. Incluir áreas que não comportam vida social no rol de áreas públicas designando-as como praças, gera a falsa sensação de que bairros tem áreas públicas suficientes para acolher a população em seus momentos de lazer.

Quando muito, canteiros, rotatórias taludes e demais áreas residuais de glebas loteadas e de sistemas viários tem papel importante na requalificação ambiental urbana contemporânea pois são áreas capazes de colaborar na captação das águas, evitar enxurradas, alimentar o lençol freático, equilibrar temperaturas, ruídos e umidade com o uso da vegetação dentre inúmeros outros benefícios. Mas, chamar de praças espaços cujas formas e localização não proporcionam funcionalidade social, não dá. É preciso que prefeituras incluam em suas propostas, a participação ativa da população na definição de suas necessidades e na validação dos projetos de arquitetura paisagística que vão além dos ajardinamentos propostos no portal.

Tem alguma dúvida ou quer sugerir um tema? Escreva para mim no Instagram: @helenadegreas.

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.

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