Geografia do Cerco
Cresci ouvindo que o governo era uma espécie de pai distante: não aparecia quando precisava, mas um dia, quem sabe, chegaria trazendo justiça, escola, hospital, dignidade
Cresci ouvindo que o governo era uma espécie de pai distante: não aparecia quando precisava, mas um dia, quem sabe, chegaria trazendo justiça, escola, hospital, dignidade. Demorei a entender que, para onde eu morava, ele nunca viria assim. Quando chegou, veio de farda, com o dedo no gatilho mirando na gente.
Antes do tiro, veio o silêncio.
Nenhum plano de bairro, nenhuma creche, nenhum posto de saúde, nenhuma praça. Nossa casa, levantada no braço, chamaram de resistência. Era só abandono empilhado em tijolos. Chamaram de favela, comunidade, aglomerado subnormal e, por fim, ‘território hostil’. A palavra ‘cidade’ parecia sofisticada demais pra quem vive sem nem ter CEP
A gente construiu o chão. O Estado construiu o vazio.
Na sua ausência, outros mandaram recado. O tráfico chegou com suas leis, a milícia com suas cobranças, a igreja com suas promessas de alívio, e a informalidade, rebatizada de “job”, com seus turnos sem descanso. A gente fincou o prego da sobrevivência no único material disponível: o nada.
Até que um dia o Estado voltou. Veio sem médico e, no lugar, trouxe o Caveirão. Esqueceu o professor, mas trouxe atiradores de elite. Prometeu balas em vez de direitos, calibrou a mira térmica. Chamaram de “retomada do território”. Fiquei pensando: só se retomaram o direito de matar.
Aprendi: no mapa oficial, existem dois países: o que recebe política pública e o que recebe operação policial. Um tem cidade. O outro, alvo.
No noticiário, chamam de ‘confronto’. Quem mora aqui sabe: é cerco, apenas cerco. É política de desistência disfarçada de segurança. E a contabilidade é sempre a mesma: o número de mortos. A manchete nunca traz o número de escolas fechadas antes de abrir, de empregos prometidos e sumidos, de vidas impedidas de existir. Como se a ausência fosse menos violenta do que a bala.
Dizem: o Estado perdeu o controle. Mentira. Escolheu o tipo de controle desejado: aquele imposto pelo medo, em vez do direito.
Quando o helicóptero desce atirando, a pergunta não é “quem é o bandido?”. É “quem tem o privilégio de ser considerado cidadão?”. Aqui, a resposta vem no som do disparo.
A morte, repetida, vira ruído de fundo. A bala que passa, o corpo que cai, o luto interminável. E o mundo segue, porque já naturalizou que alguns devem viver sob lei, e outros, sob fuzil.
Um dia disseram que esta cidade precisava ser salva. Ninguém explicou por que salvar significa sempre matar alguém antes.
Talvez a verdade seja simples demais: não falta Estado na favela. Falta Estado que não mate. Falta Estado que construa. Falta Estado capaz de chegar sem blindado.
O que sobra, por enquanto, é o aviso tácito: para alguns, o Estado é direito; para outros, o Estado é mira.
E enquanto essa regra não muda, a cidade continua dividida entre quem dorme com barulho de sirene
e quem dorme dentro dela.
*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.

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