O mal-estar nosso de cada dia ao caminhar por uma cidade abandonada pelo poder público

Cidades desiguais, segregadas, agentes públicos que fingem trabalhar e ilustram sorrisos em mídias diversas, serão lembrados nas próximas eleições

  • Por Helena Degreas
  • 07/06/2022 09h38 - Atualizado em 08/06/2022 03h30
RENATO S. CERQUEIRA/FUTURA PRESS/ESTADÃO CONTEÚDO Moradores em situação de rua no centro de São Paulo Moradores em situação de rua no Centro de São Paulo

Acordar e ler o noticiário transformou-se num martírio. Sair de casa, também. É só colocar o pé na calçada que os problemas surgem todos na sua frente. Basta olhar ao seu redor. É o tipo de vida urbana que destrói a sanidade mental e qualquer possibilidade de sensação de felicidade e bem-estar de qualquer cidadão. Existem indicadores que mensuram a felicidade interna bruta de uma nação (ONU) e o bem-estar urbano (Observatório das Cidades). Apesar de pesquisas com métodos claros e objetivos, tenho dificuldade em aceitar os resultados. Viver nas cidades brasileiras materializa toda sorte de violências em suas paisagens e que atingem em cheio a qualidade de vida e dignidade humana. Não é possível obter resultados otimistas.

Para alcançar o ponto de ônibus, passei por buracos em calçadas e por vários cabos e fios soltos pendurados entre os postes da Enel (distribuidora de energia elétrica aqui de São Paulo) que, ainda hoje, passam a sensação de que, ao encostar a cabeça em algum deles, morrerei eletrocutada. Prefeitura faz alguma coisa? Governo do Estado faz alguma coisa? A União faz alguma coisa? Silêncio sepulcral. As poucas árvores do caminho são depósitos para sacos de lixo e entulhos que se espalham ruas afora. Mania incrustrada na cultura brasileira: depositar toda sorte de resíduos ao lado do tronco de árvores. Nunca entendi. No caminho até o ponto, mesinhas de café, bares e restaurantes vão ocupando toda a largura da calçada, impedindo pessoas de transitarem. Chamar quem? A fiscalização da prefeitura? Já fiz isso, várias vezes. Magicamente, uns minutos antes da visita, tudo é retirado por atendentes e donos dos estabelecimentos sorridentes. Todos com cara de paisagem. Coincidência, não? Segundos depois da tal vistoria realizada, mesinhas e cadeiras retornam todas para o meio da calçada. 

Subo no ônibus que veio, para variar, atrasado. Entre a guia da calçada e a altura do degrau, um mundo de distância. Idosos e crianças? Há anos reclamamos da situação em um dos órgão que tratam de questões sobre mobilidade. Quem sabe meus tataranetos possam usufruir dos benefícios. Logo depois, avisto, pela janela, as equipes de limpeza urbana, recolhendo os poucos pertences de famílias em situação de rua, sendo jogados nas caçambas de caminhões de limpeza como se pessoas e pertences lixo fossem. São mães e seus filhos. Esperanças de trabalho, escola, teto e abrigo destruídas mais uma vez. A impressão que tenho é que se forem retirados de lá, da vista da população, os indesejados desparecem e voltam à invisibilidade pública. Destino da população pobre e desempregada diante da apatia da população e do quase desprezo de seus governantes. O prefeito fez o seu papel: botou a máquina pública para funcionar. Foi eficaz na limpeza.  

Do outro lado da rua, uma ocupação. Prédio parado, sem uso, há anos, encontrava-se em péssimo estado de manutenção. Localização privilegiada a poucos passos da estação de metrô Paulista. Local central, dotado de infraestrutura e equipamentos públicos, aguardava nem sei bem o quê. Provavelmente inquilinos que, durante a pandemia e a redução da atividade econômica, nunca vieram. De desperdício, passou ao status de lar para várias famílias que não têm acesso a crédito para a obtenção de suas casas. Enquanto prefeito, governador e o tinhoso perambulam por aí em seus carros e motoristas, motos e demais formas de locomoção/ostentação sustentados pelo povo, a população se vira literalmente como pode: não tem programas habitacionais e crédito para mais da metade da população brasileira que ganha até 3 salários mínimos. Quem pode, ocupa o que está vazio. Quem não pode, vai parar nos espaços públicos esperando não ser tratado como lixo pela prefeitura.

Durante o trajeto, vejo casarões e palacetes destruídos pela ação do tempo. Pensei nos brasileiros que viajam e, felizes, exibem-se em selfies diante de palacetes e casarões em terras estrangeiras enquanto, em ruínas, o patrimônio cultural e arquitetônico brasileiro padece decompondo-se, literalmente. Quem liga para velharia, não é? Bom mesmo é passear pelos destinos turísticos de outros países. Estranho país, o nosso. Será que só eu ando amarga? Só eu adoeço com as ações do tinhoso que assombra o Planalto? Do governador que, preocupado com a reeleição, busca aliados entre seus pares e esquece a gestão do dia a dia do Estado? Ou ainda do fantasma que assumiu a prefeitura de São Paulo após a morte do outro e, que distante dos compromissos assumidos pelo seu antecessor, sequer tem seu nome e feições lembradas pela população? 

Para além da saúde física e mental, o bem-estar urbano demanda políticas públicas, programas e ações claras dos prefeitos, vereadores e agentes públicos direcionadas à mobilidade, à qualidade ambiental, às condições habitacionais, ao atendimento de serviços coletivos e à existência de infraestrutura urbana. Estes são os indicadores que apontam o bem-estar de qualquer cidadão urbano. O que descrevi chega a ser uma reclamação apenas, diante do sofrimento pelo qual milhões passam nas periferias urbanas. Dito de outra forma, o bem-estar está associado à existência de infraestrutura e prestação de serviços públicos de qualidade que atendam às necessidades e expectativas de todos os cidadãos de forma igual, sem privilégios. São estas as pessoas que, direta e indiretamente, pagam seus impostos e, com eles, viabilizam o pagamento dos salários e demais penduricalhos que se agregam aos holerites dos diversos agentes públicos. Cidades desiguais, segregadas, agentes públicos que fingem trabalhar e ilustram sorrisos em mídias diversas, serão lembrados nas próximas eleições. 

Nós, eleitores, temos a obrigação de conhecer a fundo os candidatos: quem são, do que se alimentam, onde habitam… “puxar a capivara” é uma expressão forte, mas entendo que, se numa entrevista de trabalho para uma vaga em empresa eu levo meu currículo impresso e deixo à disposição para a avaliação do entrevistador, por que não fazemos o mesmo com estas criaturas que pleiteiam uma vaga no poder público com o nosso voto? Políticas públicas devem ser direcionadas para o bem-estar dos cidadãos, não para o poder e bem-estar dos seus governantes. Do jeito que está, pretendo criar o Índice de Mal-Estar Urbano. Problemas não faltam. Tem alguma dúvida ou quer sugerir um tema? Escreva pra mim no instagram: @helenadegreas.

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.

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