Onde vai morar quem perdeu a casa nos deslizamentos provocados pelas chuvas?

Planejamento urbano, quando realizado por políticos comprometidos com toda a população e não apenas com parte dela, irá incluir os mais vulneráveis na pauta de discussões da agenda urbana local

  • Por Helena Degreas
  • 22/02/2022 09h00 - Atualizado em 22/02/2022 09h45
Reprodução/Arquivo Pessoal/Helena Degreas Foto frontal de roupas penduradas em um varal Em "São Paulo: o planejamento da desigualdade", Raquel Rolnik diz que a desigualdade é fruto de projeto político construído ao longo da urbanização

Onde vai morar quem perdeu a casa nos deslizamentos provocados pelas chuvas? Essa é a questão que aflige todos aqueles que, residentes em áreas de risco, sobreviveram aos deslizamentos de terra, soterramentos, inundações e alagamentos que vem ocorrendo sistematicamente, matando pessoas e causando danos materiais irreparáveis à população vulnerável apontando, de forma escancarada há anos, que a era do novo normal climático veio para ficar, com suas tormentas.

Ninguém consegue impedir a chuva de continuar a fazer o que sempre fez: alimentar nascentes, leitos de rios, lençóis d’água, alagando várzeas e escorrendo em filetes e córregos por entre as “rugas” das encostas montanhosas, alimentando novamente o rio principal. Mas, o planejamento urbano quando realizado por prefeitos e vereadores comprometidos com toda a população e não apenas com parte dela, irá incluir os mais vulneráveis na pauta de
discussões da agenda urbana local.

A melhoria da forma de governar diante de cenários cada vez mais complexos no âmbito das questões que envolvem as consequências geradas pelos extremos climáticos nas cidades, demandam das entidades federativas capacidade técnica para planejar, elaborar e implementar políticas com o objetivo de prestar serviços à sociedade, visando a eficácia no atendimento às demandadas e ao bem-estar da população. Como na gestão de uma empresa, as boas práticas da administração pública envolvem a gestão de riscos originários da oscilação dos recursos disponíveis para a solução de problemas que vão além do imediatismo tacanho que predomina nas ações públicas brasileiras criadas
por vereadores, deputados, senadores e ministros recentemente e que expõem, pela falta de bom senso, o despreparo na gestão da coisa pública.

Pela redução drástica das verbas federais destinadas à defesa civil quando associadas ao silêncio sepulcral daqueles que nos pedirão votos no segundo semestre, não é de se estranhar o número de mortes em todo o território graças à incapacidade técnica e humana de cumprir o papel de avisar a população dos perigos iminente. É digno de nota, o silêncio dos prefeitos sobre a situação. No Brasil, talvez a inclusão dos prejuízos causados por decisões contrárias aos
laudos técnicos e à ciência poderiam ser incluídos como riscos. Profissionais que trabalham com o mercado de capitais, sofrem os estragos das falas e ações errantes de nosso mandatário, sabem bem o que é isso. Nós cidadãos, ao assistir o horror diário que é a contagem dos mortos e a incapacidade das prefeituras de atuarem de forma eficaz, também.

As cidades são organismos vivos, transformam-se diariamente pois são realizações humanas. Quando governos assumem a decisão de procrastinar ações de retirada da população das áreas de deslizamento e inundações, ignoram conscientemente as mortes e as perdas materiais futuras. Ouso afirmar, que agem como assassinos. Olhar para o dia ensolarado e torcer para que São Pedro cuide dos brasileiros pobres, não dá. É uma decisão política, não técnica. Os recursos técnicos e financeiros, quando existentes, foram sendo realocados para outras prioridades ao longo dos anos. Vidas pobres parecem não ter grande importância para nossos gestores públicos. Hoje mais da metade da população brasileira vive com até um salário-mínimo. É isso. A construção de nossas cidades materializa na paisagem o desprezo por meio da segregação: centro e periferia – qual das duas realidades apresenta a melhor
infraestrutura e prestação de serviços?

No livro “São Paulo: o planejamento da desigualdade”, a arquiteta Raquel Rolnik afirma que a desigualdade é fruto de um projeto político construído ao longo da história da urbanização e acrescenta que, apesar do quadro constrangedor e do abismo social que se evidencia nas cidades, o planejamento urbano é resultado de escolhas. E como tal, é possível escolher a construção de um futuro melhor e socialmente justo. Eu acrescentaria que as escolhas, no caso de Petrópolis e demais áreas afetadas por deslizamentos, são político-imediatistas e nada técnicas. Quanto maior o desastre, maior a chance de algum “salvador da pátria” aparecer em tempos de eleição, sorrindo e apresentando soluções esdrúxulas com o objetivo de sair-se bem na “foto”, durante as próximas eleições.

Em entrevista ao jornalista Adalberto Pioto no programa Entrelinhas, da Jovem Pan, comentei sobre a questão da oferta de crédito para este contingente humano. As imagens ao vivo de pessoas desesperadas vagando pelas ruas à procura dos corpos das pessoas queridas, era desolador. Filmes de terror chegam a ter impacto emocional menor em mim do que aquele que senti nas imagens que passavam “ao vivo”. O tour feito por helicóptero pelo atual inquilino do planalto, apenas reforça a inépcia e a aversão à realidade concreta dos nossos governantes. Oferecer o “auxílio-Brasil” no valor entre R$ 105.01 e R$ 210.00 é, para dizer o mínimo, humilhante, inaceitável, indigno diante do
“cenário de guerra” que ele mesmo citou. O centavo não é erro de digitação.

O que fazer então?

Havendo a vontade política (no contexto atual, não há), os entes federativos fariam uma revisão das políticas habitacionais para a população de baixo poder aquisitivo. A habitação é um direito constitucional. No Reino Unido, desde os anos 1980, existe o National Planning Policy Framework (NPPF) que garante moradias com valores acessíveis à população de baixa e média renda. O conceito de habitação social foi reformulado, determinando-se a participação e intervenção do Estado como necessária e obrigatória com o objetivo de garantir o acesso dos cidadãos à moradia e infraestrutura urbana entendendo-se que as regras praticadas pelo mercado imobiliário, bancos e financeiras, visam o lucro e não o bem-estar social, papel intransferível dos agentes públicos. Do aluguel social à ocupação de unidades vazias em áreas centrais, governos assumiram a tarefa de ampliar a oferta disponível à população visto que há um processo de envelhecimento em andamento e, por consequência, da saúde, da mobilidade física e de adultos sozinhos, sem famílias.

Acrescente-se o incremento populacional causado pelos imigrantes e refugiados. Trata-se do planejamento de risco, ou seja, por meio do uso de dados demográficos, sociais, econômicos associados às condições políticas mundiais, é possível diagnosticar e prever as necessidades urbanas no futuro, realizando um planejamento urbano próximo à realidade local e que inclua demandas futuras. Para atender as necessidades diagnosticadas no relatórios, prefeitos criaram instrumentos de incentivo à iniciativa privada para a construção de unidades habitacional em áreas cujos terrenos são públicos impondo a destinação de unidades habitacionais à prefeitura por meio de registro. A modelagem de viabilidade financeira e de produtos entregues é analisada pelo Estado que tem o direito de não acolher a proposta. A propriedade dos imóveis garante um estoque de habitações disponíveis para locação, venda e várias outras formas de ocupação que alinham-se às maneiras contemporâneas de viver nas cidades. A gestão dos processos de seleção das pessoas que serão atendidas, modalidades de ocupação e instrumentos atrelados à viabilidade financeira do termo “morar”, estão a cargo dos conselhos municipais de habitação.

As unidades habitacionais localizam-se em bairros centrais e em edifícios cujos residentes enquadram-se em diferentes perfis econômicos e sociais. Dividem as mesmas calçadas, parques, escolas, transporte público. Misturinha salutar que exibe o esforço de construir, mesmo que num processo longo, uma sociedade democrática saudável. Nossos representantes eleitos, pelo que ando lendo para o caso de Petrópolis e outros tantos sinistros (se é previsível, não é fruto do acaso) que acontecerão nas próximas chuvas torrenciais, são inaptos tecnicamente para a adoção de boas práticas de gestão dos interesses públicos. Os desabrigados pelos deslizamentos em Petrópolis e demais cidades que encontram-se em situação de risco e alerta, estariam instalados em unidades habitacionais
pertencentes aos governos (federal, municipal estadual) disponíveis “em estoque” para atender situações emergenciais antes do ocorrido. Os locais estariam desocupados.

Somos vítimas dos entes federativos e suas decisões construídas a partir do voluntarismo, da falta de planejamento, do imediatismo e da transparência no uso de recursos. Se o papel do Estado é trabalhar para garantir o bem-estar do cidadão, o que justifica as ações que levam a morte dos cidadãos? Para quem e para que trabalham os políticos eleitos?

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.

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