Ouvir a população interessada é a chave para a construção de bons lugares para se viver
Projetar é uma arte que permite equilibrar diversos interesses, pois atende as expectativas de todos os públicos envolvidos na transformação da cidade
Vinte e dois mil e quinhentos reais o metro quadrado de um novo empreendimento recém-lançado na região de Pinheiros, bairro de São Paulo. O complexo multifuncional concentrará, em um lote, apartamentos de 174 m² e 214 m², além de unidades de 30 m². Em seu folder, encontram-se perspectivas deslumbrantes de ambientes como o lobby, a piscina, a horta, a cascata, o fitness, o living space, o pet place — próximo à brinquedoteca — e o playground. O térreo destina-se às áreas comerciais. Escritórios, lojas e demais áreas de uso não residencial ficarão concentradas no nível térreo e nos primeiros pavimentos. Estacionamentos, no subsolo, também foram previstos para aqueles que não renunciam ao conforto de um carro particular, mesmo distantes 50 metros do metrô. Sonho de consumo para muitos. Pesadelo para a população que vive no lugar. Por quê?
Já ouvi colegas comparando estes empreendimentos a complexos multifuncionais como o Conjunto Nacional (1958), projetado pelo arquiteto David Libeskind e que caracteriza-se por ser um dos primeiros grandes edifícios modernos multifuncionais implantados na cidade de São Paulo, com um programa que envolve atividades residenciais, comerciais, culturais e de lazer (restaurantes, teatro, cinema, galeria de arte, livrarias e inúmeros escritórios). Certamente, a comparação é um exagero, quando não um equívoco imenso. No afã de justificar a “torre mais alta de Pinheiros” (placa que li este final de semana numa das novas três torres recém-lançadas) como a materialização de um processo de verticalização que traz os benefícios previstos no Plano Diretor provenientes de uma cidade compacta (outro termo bastante utilizado por nós, urbanistas, e que trata de adensar — colocar mais pessoas, utilizando os locais em que existe infraestrutura disponível), o resultado que vem ocorrendo é, no mínimo questionável, precisando de revisão urgente. No caso do Conjunto Nacional, o acesso do térreo pelo cidadão é livre e desimpedido, situação que gera a riqueza de uma vida social pública originária da integração entre calçadas, o edifício e toda a área de envoltória da quadra. Houve um projeto de cidade, não apenas do edifício.
Não é possível afirmar que os novos condomínios previstos em lei permitam a entrada de um estranho sem a apresentação de uma identidade, como ocorre no complexo projetado pelo arquiteto. Isso é fato! Venho testando o ingresso sistematicamente a título de pesquisa e sempre sou barrada com a frase: “Se a senhora não encontra-se hospedada, não pode entrar”. Pergunto: e a galeria de lojas que permite atravessar de uma rua a outra, prevista no empreendimento original? Responde o vigia: “Que galeria de lojas?”. Pois é. A fachada ativa, por sua vez, foi substituída por farmácias, mercados de rede e cafés com pão de queijo que empobreceram, sobremaneira, a vida coletiva pública, como se estas novas vitrines pudessem substituir barzinhos, alfaiates, costureiras, sapateiros, quitandinhas, lavanderias locais, petshops e uma vida inteira pública que acontecia nestes locais anteriormente. A rua com escala humana, na altura do olhar, tão valorizada por urbanistas, não aconteceu. Pelo contrário: substituiu a vida comunitária por comércios franqueados.
O Plano Diretor (2014) da cidade de São Paulo, associado à Lei de Zoneamento, está transformando áreas inteiras da cidade a partir de três objetivos principais: adensamento construtivo e habitacional no entorno dos sistemas de transporte coletivo de alta e média capacidade — como o metrô, trem e corredores de ônibus — e nos usos comerciais e de serviços nos térreos das edificações de uso misto (o que os arquitetos vêm chamando de fachada ativa), ampliando, teoricamente, a largura das calçadas. Para viabilizar o plano, foram criadas regulamentações urbanas, incentivos fiscais e legais direcionados aos empreendedores do setor imobiliário.
As taxas geralmente cobradas pela prefeitura deixaram de existir, por exemplo, para a construção de apartamentos compactos quando a Lei nº 16.402 de 22 de março de 2016 permitiu classificá-los (alterando a lei de zoneamento) como “não residenciais”, mesmo funcionando como serviço de moradia em inúmeros casos. O que ganhou o setor de incorporação e construção civil? Os estúdios não-residenciais, como são conhecidos em São Paulo, não são contabilizados na área computável do empreendimento, podendo chegar a até 20% do total do potencial permitido do lote nas ZEU’s (Zonas Eixo de Estruturação da Transformação Urbana). Em outras palavras, “é um incremento no VGV (Valor Geral de Vendas) do empreendimento, que pode chegar a mais de 20%, se considerarmos o acréscimo de outras áreas privativas não computáveis permitidas pela legislação, garantindo assim a concretização do Plano Diretor ao criar edifícios de usos mistos com fachada ativa”, afirma Ricardo Baddini, líder na área de inteligência imobiliária na Acia L35 Arquitetos.
Manifestações contrárias à verticalização, na forma como vem ocorrendo em alguns bairros da cidade, levaram à organização da sociedade civil, como é o caso do Movimento Pró-Pinheiros, que pretende que o adensamento das ruas do bairro tenha critérios definidos e que não resultem apenas dos cálculos numéricos das taxas e índices provenientes do zoneamento. A população, principal impactada, quer participar ativamente dos rumos que vem tomando a cidade. Quer ser ouvida, deseja ser parte integrante da transformação em andamento.
“Falta projeto!”, argumentou Valter Caldana, arquiteto e urbanista, professor na faculdade de arquitetura e urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie no podcast Roda de Conversa, do Pró-Pinheiros. “Não se pode novamente fazer um plano e um zoneamento com caráter imobiliário”, define. Não se trata apenas do Plano Diretor e do Zoneamento, trata-se da falta de projeto e da definição da forma resultante como papel preponderante do poder público. “É como se o mercado fosse o único protagonista… Se tivesse sido realizado um projeto para a Avenida Rebouças como um todo ou para o miolo do bairro, discussões sobre a altura dos edifícios não existiriam.”
Para cada lugar na cidade, há uma enorme diversidade de usuários, partes interessadas e membros do poder público que serão impactados pelos resultados dos planos e regulações. A cidade não pode ser tratada como uma junção de lotes incorporados por imobiliárias ou empresas que projetam a partir de cálculos matemáticos provenientes das taxas e índices existentes nas regulações urbanas. Não é possível viabilizar a função social da propriedade, considerando preponderantemente os direitos dos proprietários de forma individual, lote a lote. A cidade não é um conjunto de lotes juntados em quadras. Se a prefeitura assumiu uma transformação desta magnitude, deve abraçar o projeto do conjunto urbano em sua totalidade e providenciar métodos de participação efetiva e engajamento do público envolvido.
Reiterando o que disse Caldana, com o projeto na mão, com maquetes físicas das alterações, a população entende e consegue discutir suas necessidades, cabendo ao poder público a mitigação de eventuais desavenças ou efeitos negativos advindos do planejamento urbano. Todos devem sentar-se à mesa para expressar suas ideias sobre as alterações que sua rua e bairro irão sofrer na totalidade do eixo e das áreas de intervenção. As manifestações resultantes da falta de qualidade urbana dos produtos imobiliários implantados nas ZEU’s deixam clara a importância do poder público municipal assumir o papel de protagonista no projeto de lugar.
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*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.
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