Quais são as propostas para a ocupação das áreas de preservação permanente ao longo dos rios e córregos que atravessam as cidades?

Crescimento das cidades ocorreu a partir da modificação dos ecossistemas, quer pela falta de planejamento, quer pela omissão de governos na formulação de diretrizes para atender a demanda dos mais vulneráveis

  • Por Helena Degreas
  • 16/08/2022 11h00 - Atualizado em 16/08/2022 15h00
Acervo QUAPA-SEL FAUUSP Imagem aérea

Escrevo a coluna da semana ainda atormentada com a solução simplista aprovada pelos ilustres senadores que, mesmo sem passar por qualquer conselho interno deliberativo, autorizaram o projeto de lei que reduz em cerca de um terço o tamanho da Floresta Nacional de Brasília, afirmando que a decisão melhorará a vida das mulheres irregularmente assentadas na região. A ação, além de incentivar a ocupação ilegal em áreas preservadas, mostra o quão desconectados da realidade climática e hidrológica do planeta Terra e do nosso Brasil, estão os ilustres representantes eleitos pelo povo. Passado algum tempo desde a aprovação da “municipalização” das regras de preservação permanente, pergunto se o leitor conhece algum plano de ocupação urbana das margens de córregos e rios de sua cidade que tenha sido criado e colocado em consulta pública para avaliação da população e que defenda a bandeira ambiental; se sim, por favor comente no texto pois estou em busca de boas notícias. O processo de urbanização e crescimento das cidades brasileiras ocorreu a partir da modificação profunda dos ecossistemas naturais, quer pela falta de planejamento visando o equilíbrio entre as ações humanas, quer pela omissão de governos na formulação de diretrizes de planejamento para atender a demanda da população mais vulnerável. Ocupações de toda sorte ocorreram sobre os fundos de vale destruindo as várzeas de rios, canalizando-os, retificando-os para adequar sistemas viários, tamponando-os de tal forma que hoje assistimos grupos de ativistas ambientais (neles me incluo) realizando passeios pelas cidades e mostrando, a incrédulos cidadãos de todas as faixas etárias, que sob seus pés, existe um rio. Com as primeiras chuvas da primavera, novamente serei obrigada a escrever sobre inundações em áreas de risco, fundos de vale e várzeas, novamente, lembrando a todos que ali jaz um rio. A Prefeitura? Provavelmente colocará plaquinhas nos locais afetados informando que as áreas estão sujeitas a inundações e alagamentos. Afinal, é importante informar a população de que até o momento, é o que a Prefeitura pretende continuar fazendo.

Neste sentido, a Nota Técnica recém-publicada pelos pesquisadores do MapBiomas Brasil que traz uma análise da ocupação urbana em torno de corpos hídricos em cidades e áreas rurais no Brasil é bem-vinda, ao apresentar um estudo que estima as áreas ocupadas e não ocupadas pela urbanização na faixa marginal de 30 metros de corpos hídricos no contexto das cidades entre 1985 e 2020. O trabalho quantifica as áreas de preservação permanente (APPs) hídricas ocupadas e não ocupadas por construções ou infraestrutura para um conjunto de 17 municípios selecionados como estudos de caso e que compõem a bacia do Rio Paraná e na Amazônia Legal. A publicação da Lei 14.285/2021, que altera a Lei de Proteção da Vegetação Nativa (12.651/12), conhecida como Código Florestal no que se refere à proteção de Áreas de Preservação Permanente (APPs) hídricas em áreas urbanas, concede aos municípios a liberdade legal de criar parâmetros próprios mesmo que divergentes do Código Florestal para a delimitação das APPs. Antes das alterações, as faixas de proteção ao redor dos rios variavam entre 30 e 50 metros conforme a largura dos mananciais. A partir da nova lei, o tamanho da área a ser protegida ao redor dos rios será definida pelos prefeitos tanto para a área rural quanto para a área urbana. As justificativas são as mais diversas: a ocupação das áreas de preservação é necessária para gerar empregos ou, ainda, vai de encontro à necessidade de regularização de empreendimentos imobiliários que foram prejudicados com a aprovação do Código Florestal. O fato é que a preservação das áreas de várzea é indispensável para reter a água e controlar a sua velocidade de escoamento, evitando, em áreas internas às cidades, as inundações que ocorrem quando as chuvas são intensas. O processo de urbanização, com a complacência de governos, foi responsável pela eliminação das áreas que funcionavam como “esponjas”, graças à impermeabilização. Se prefeituras permanecerem omissas, as áreas continuarão sendo ilegalmente ocupadas, mais plaquinha de “inundações e alagamentos” serão colocadas em todas as cidades.

O que deveria o poder público fazer? A lição de casa. Ao invés de apenas sinalizar com plaquinhas informando riscos, deveriam planejar qual o destino das áreas de várzeas (APPs que ainda não foram totalmente desconfiguradas) que correm ao longo de rios e córregos urbanos, protegendo-as de ocupações ilegais. Entidades ligadas à preservação do ambiente, universidade, grupos de pesquisas além de alguns poucos parlamentares, foram contrários às propostas e, ainda assim, a nova lei com as alterações de todas das áreas de preservação permanente, incluindo as áreas de várzea, foi aprovada. Dos cerca de 422 mil hectares de áreas de preservação permanente com 30 metros de largura em torno dos rios, cerca de 300,2 mil hectares (71%) são de áreas não urbanizadas (2020), ou ainda, encontram-se fora das cidades (MapBiomas Brasil). A pesquisa mostra a dimensão do problema: a partir da leitura de dados obtidos por meio do mapeamento com imagens de alta resolução associados à análise das legislações que incidem sobre à APPS (descritos ao longo da metodologia de análise, cuja leitura recomendo), foi constatado o crescimento de áreas urbanizadas nessas faixas marginais de córregos e rios da ordem de 61,6 mil hectares (102%), totalizando mais de 121 mil hectares (29% do total) entre os anos de 1985 e 2020 durante a vigência do Código Florestal sem as alterações recentes. A ocupação vem ocorrendo sem a fiscalização adequada dos órgãos responsáveis pela sua preservação apesar de todo o aparato tecnológico existente que, mesmo permitindo a ciência dos fatos (e de todas as ilegalidades na ocupação, queimadas etc.) em tempo real, ainda não é plenamente adotado pelos ilustres parlamentares que preferem acolher os “achismos”, os acordos e os conchavos internos.

Das 17 APPs existentes no municípios estudados, cerca de 48.920 ha (82%) permanecem com cobertura vegetal ou superfícies de água estando cerca de 16.070 ha (27%) das APPs cobertas por vegetação ou água em áreas com ocupação urbana densa. Esta informação por si só aponta para a necessidade de elaboração de políticas e programas de conservação ambiental em municípios com ênfase na manutenção e preservação das características naturais das várzeas de córregos e rios intraurbanos objetivando neutralizar e compensar os efeitos da urbanização no que tange aos processos hidrológicos e biológicos nas cidades. A ocupação inadequada prejudica a drenagem urbana desafiando o seu planejamento e gestão em função da complexidade dos atores envolvidos e do seu caráter interdisciplinar. Uma decisão como a dos senadores que reduziram a Floresta Nacional de Brasília e daqueles que delegaram aos municípios o poder de decisão do que fazer com as APPs hídricas, dificilmente terão competência ou vontade política para respaldar tecnicamente seus votos, incluindo os desafios que envolvem as políticas diversas como a de habitação, saneamento ambiental, infraestrutura, arborização e vegetação além de incluir empresas, sociedade civil, seus representantes e governos. É mais fácil dizer à população que o voto favorável melhora a vida das mulheres assentadas ou que é importante regularizar as ocupações ilegais. Sinto vergonha. Fica a pergunta: quando será que parlamentares, senadores e demais políticos eleitos utilizarão as informações técnicas, construída a partir de pesquisas idôneas, como respaldo às decisões políticas que afetam a minha, a sua e a nossa qualidade de vida urbana?

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.

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