Quer revitalizar o centro de São Paulo, prefeito? Coloque pessoas morando nele
Para matar uma cidade, é só tirar as pessoas que andam nela e transformá-la em estacionamento para ‘madames e cavalheiros’ que nasceram e cresceram numa redoma
“O centro volta ao dono.”. Este foi o título da matéria publicada pelo jornal Folha de S.Paulo em 4 de setembro de 1976 comemorando a pedestrianização do centro histórico da capital paulista realizada pelo prefeito Olavo Setúbal. Engenheiro atento, culto, viajado, entendeu a receita para criar cidades voltadas aos seres humanos: substituir o carro por pessoas. Viajou o mundo e observou com seus colegas prefeitos. Ainda criança, lembro-me do meu pai vociferando impropérios (palavrões, em português coloquial) contra a atitude do então prefeito, em impedir que automóveis de passeio entrassem no centro velho. “Um absurdo”, dizia. “Vão espantar os fregueses!”. Já meu sogro, homem sereno, dizia que ir ao centro de carro era besteira porque nunca encontrava lugar para estacionar e o trânsito era um inferno. Completava dizendo que só levava a mulher e as amigas às compras de carro porque, acostumadas ao conforto do “motorista de plantão” (ele), não queriam tomar o ônibus para chegar até lá. Deixava-as e ia embora. Voltavam de taxi. Frescuras das “madames” daquela época.
Cerca de quarenta anos depois, assisto à entrevista do programa Morning Show, da Jovem Pan News, e, espantada, ouço do atual prefeito Ricardo Nunes que, dentre as ações de revitalização propostas por ele, destaca-se a criação de 240 vagas para estacionamento de carros particulares em frente ao Teatro Municipal com a ação da guarda Civil Metropolitana para garantia de segurança dos convivas. Compare suas propostas ao que vem sendo feito em grandes cidades do mundo. Em tempo: não é ele que determina o que faz a Guarda Civil Metropolitana. Como bem lembrou Esper Chacur (outro colunista da JPNews), foi criada por Jânio Quadros em meados da década de 1980 para a proteção de bens, serviços e instalações municipais, conforme previsto no art. 144 da Constituição Federal. Ficar em frente a um equipamento público é o motivo de sua existência. Policiar não tem nada com sua missão original. Destaco aqui algumas frases da entrevista para reflexão dos leitores:
“A gente gasta R$ 140 milhões por ano no Teatro Municipal…”. Discordo, prefeito. Cultura não pode ser entendida como gasto da prefeitura. É investimento em pessoas e na identidade cultural do país. Não pretendo discorrer agora sobre o assunto, vou deixar para outro dia. Se a moda de estacionar em frente aos equipamentos culturais localizados na região histórica “pegar”, e nem estou citando o centro expandido, sua próxima entrevista, prefeito, será intitulada “Os carros retomam o centro”. Não sei se o senhor conhece os equipamentos culturais localizados nas áreas centrais da sua cidade. Eu conheço e frequento vários. Por gosto. Recomendo fortemente que visite a plataforma GEOSAMPA. É gratuita e é da Prefeitura de São Paulo. Nela, o senhor encontrará quais são e onde estão as bibliotecas, espaços culturais, museus, teatros, cinemas, áreas para shows, entre outras atrações no centro, próximas ao Teatro Municipal. Por que só ele é privilegiado em sua fala? Me propus a contar no mapa, mas perdi a paciência depois do vigésimo ícone. Se cada equipamento cultural for contemplado com 100 vagas, teremos por volta de 2.000 novas vagas (15m²) que, juntas e sem contar a área de circulação viária (abrir ruas para ter acesso), utilizarão 30 mil metros quadrados para estacionamento de carros. Ao invés de perguntar ao amigo João Carlos Martins (cuja vida profissional e pública admiro profundamente) e à comunidade pertencente ao seu círculo de amizades se é ou não conveniente estacionar em frente ao teatro, pergunte a todos eles como se comportam no exterior, quando visitam as cidades civilizadas mundo afora. Explico: o grupo que deseja automóveis particulares estacionados na porta dos teatros nas regiões centrais de São Paulo, quando visita museus, teatros e afins em cidades turísticas como Paris, Nova York, Madri, Londres e até mesmo aqui pertinho, em Buenos Aires, Montevidéu ou Santiago, o que faz? Chamam um táxi ou um motorista por aplicativo. Estou errada? Não. Sabe o por quê? Depois de uma peça de teatro, estender o programa cultural com um bom jantar entre amigos regado a vinho, por exemplo, é algo que inviabiliza a direção. Bebida alcoólica e carro não pode. Né? Imagino que o problema maior deste grupo, lá no fundo de seus pensamentos, resida no fato da dificuldade de aceitação e convivência com seres humanos que encontram-se em situação de vulnerabilidade social e estão morando nas ruas do maior centro financeiro da América Latina. Vamos começar tratando desta questão, prefeito?
“À noite não tem nenhuma funcionalidade naquelas calçadas”. Sabe o por quê, prefeito? Porque não há investimento para o retrofit de edifícios construídos no século passado para que, adaptados à nova função, pessoas possam morar neles. Falta habitação, senhor prefeito. Se houver crédito para compra e requalificação dos edifícios para moradias, tenho certeza absoluta de que todos aqueles que desejam morar em regiões ricas em infraestrutura, como ocorre com o centro da cidade, estarão lá, fazendo filas para alugar e/ou adquirir imóveis com crédito barato e demais incentivos já existentes. Passear com seu pet à noite: quem nunca? Conversar com os amigos no bar da rua próxima, andar com carrinho de bebê, fazer as compras no mercado, levar a roupa na lavanderia, comprar besteirinhas com os camelôs que jogam a mercadoria no chão sobre um pano, comprar churros, pipoca, batata frita, pamonha, churrasco grego e nem sei mais o quê para levar para casa e comer enquanto assiste à TV sozinho ou com a família. Parte destas atividades eu faço à noite no bairro onde moro. Dá para fazer lá também, se tiver gente morando, senhor prefeito. Quer matar uma cidade? Tire as pessoas que andam e transforme-a em estacionamento para “madames e cavalheiros” que nasceram e cresceram numa redoma e odeiam misturar-se com pessoas.
Poderia ficar aqui escrevendo por páginas sobre a entrevista dada. A única frase que ficou marcada e que mostra sua vontade de fazer algo por São Paulo foi “eu não posso ser omisso, vou tentar”. Dou-lhe meu voto de confiança. Por favor, pergunte aos seus colaboradores que pertencem ao setor público. São técnicos concursados. Eles sabem o que é possível fazer para que o senhor consiga ter êxito. Já fizeram isso nos anos 70 e viraram exemplo para o mundo, sabia?
Há décadas eles produzem estudos e trabalham para fazer esta cidade mais humana. Ouça-os, prefeito. Entenda o que eles irão lhe dizer. Ouça a população também. Aquela que não tem carro e está morta de vontade de morar no centro e ir ao teatro. Em qualquer dia e horário. Temos muito o que lhe dizer e ajudar. A gente quer que dê certo. É sério. Pare de dar ouvidos às comunidades cuja ideias encontram-se descoladas do contexto atual, egoístas, emboloradas e que detestam conviver com grupos de pessoas que não são do seu círculo próximo. Preferem um “cercadinho social”. E isto a gente já sabe no que deu.
Tem alguma dúvida ou quer sugerir um tema? Escreva para mim no Twitter ou Instagram: @helenadegreas.
*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.
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