Respeitar e cuidar da natureza é fundamental para fazermos as pazes com a terra que chamamos de lar
Houve um tempo em que uma cidade desafiou a natureza; logo apareceram os primeiros sinais de algo não andava bem
Houve um tempo em que uma cidade desafiou a própria natureza. Era grande, muito grande. Destemida, acreditava ser capaz de crescer infinitamente esparramando-se sobre o território e tomando para si morros, águas, terras, animais e florestas. Podia tudo. Mudava tudo. Não dava satisfações. Mas, também, ninguém perguntava ou questionava nada. De tempos em tempos, a cidade fazia perguntas ou dava explicações à gente. Tinha uma audiência aqui, uma votação pública ali. Os resultados de todos os processos, tecnicamente justificados pelos técnicos disponíveis, como sempre, mostravam-se favoráveis às suas decisões. Tudo nos conformes das leis. Pudera, como baratas tontas, a gente que vagava pelas ruas já caóticas e poluídas ia para lá e para cá procurando meios para sobreviver pois, ninguém mais sabia muito bem, o que viver significava.
Determinado dia, a cidade decidiu que poderia crescer para cima em locais que considerava estratégicos. “Tocar o céu”, pensava sozinha. “Colocar um montão de gente morando e trabalhando no mesmo lugar. Parece grandioso”. Sem pensar demais no assunto, a ideia foi tomando corpo e forma. Graças às reuniões com quem construía, com quem vendia e com quem criava negócios, a cidade decidiu revisar seu plano diretor, seu zoneamento e dedicar recursos públicos que, quando associados aos investimentos privados, seriam capazes de gerar cenários promissores. Uma nova era econômica voltada à prosperidade se avizinhava. A construção civil apoiada pela avidez de ganhos futuros do setor de financiamento e crédito bancários, ofereciam os recursos necessários com prestações a perder de vista, aos clientes que, especiais, pagariam os juros mais altos do planeta. Sequer questionavam. Tudo de bom.
À medida que os anos se desenrolaram, a cidade cresceu vertiginosamente como previsto. Novos edifícios surgiram, majestosos gigantes de vidro, pedras, concreto e aço… todos com múltiplas funções e, muitos deles, convivendo numa única quadra. Nada melhor do que não precisar sair de casa. Além de poder escolher se o que cabe no seu bolso é uma casa do tamanho de um quartinho de hotel ou outra, com algumas poucas dezenas de metros quadrados fragmentados pelo sonho proporcionado pelo design visionário das empresas de marketing imobiliário, o morador pode agendar, pagando, obviamente, uma vaga na piscina, no pet place, na marcenaria ou no coworking space. Tudo dentro de um único lote condominial compartilhado.
Mas, enquanto a cidade florescia materializando seus sonhos megalômanos e inquestionáveis, algo invisível se dissipava nas profundezas: o lençol freático, a água que alimentava as nascentes, os rios, nutria as árvores que insistiam em existir e seguravam o solo sobre o qual as construções aconteciam. Cada prédio, uma perfuração no solo, uma extração insaciável. As bombas que levavam ao desenvolvimento roncavam dia e noite, sugando água das profundezas da terra. Ninguém parecia notar, ou talvez, ninguém quisesse notar. Era como se a água fosse um recurso inesgotável, uma fonte perene que nunca secaria. Então…
Os primeiros sinais de que algo não andava bem, apareceram. Rachaduras nas paredes, edifícios inclinados como torres de Pisa modernas, pavimentos e ruas, várias afundaram. Cederam ao peso de uma cidade que crescia cada vez mais adensada. E, então, vieram as tempestades, os ciclones e o grande dilúvio. As ruas se transformaram em rios furiosos, carregando carros, sonhos e vidas. Com ele, o clima enlouqueceu: num mesmo dia, as pessoas viviam temperaturas de verão escaldante e frio congelante afetando a saúde de todos. Foi um despertar doloroso para a cidade. Como a natureza ousava contrariar seus sonhos de grandeza? Não deveria ela curvar-se aos seus desejos e vontades?
Foi quando alguém, não sabiam informar quando, quem e em qual situação ocorreu, lembrou das águas subterrâneas, rios cuja natureza subjugada, conformaram-se com a canalização forçada: suas águas limpas, desprezadas e descartadas como algo sem valor, foram direcionadas aos bueiros, galerias e esgotos pelas obras que visavam um desenvolvimento insustentável. Quietas, longe dos olhos da gente, foram esquecidas. Preocupada, a cidade pensou em como solucionar a situação. Primeiro, veio o reconhecimento. A cidade admitiu sua culpa, reconheceu que não poderia continuar esgotando as águas subterrâneas e assumiu os erros provenientes das alianças políticas questionáveis. Era hora de reverter o curso, de restituir algo à Terra e à gente que nela morava. Preocupar-se com o desenvolvimento econômico sem sustentabilidade, não gera bem-estar e justiça.
A jornada foi longa. A cidade começou a coletar água da chuva, armazená-la em cisternas subterrâneas e tratá-la com respeito. Cada gota era considerada preciosa, um presente da natureza a ser preservado. Logo, a cidade inverteu o funcionamento das bombas incessantes das construções. Em vez de retirar água e desperdiçá-la, passaram a injetar água tratada no subsolo. Tecnologia existente e viável, não era utilizada com mais frequência inexplicavelmente. A cidade estava tentando desculpar-se com a Terra, restaurando o equilíbrio outrora desfeito. Das galerias, o precioso líquido, voltava ao seu leito subterrâneo natural. A transformação foi gradual, mas os sinais de recuperação surgiram. As rachaduras nas paredes diminuíram, os edifícios se endireitaram e as inundações tornaram-se eventos raros. A cidade estava se curando, e a natureza respondia generosamente.
No entanto, não parou por aí. A cidade começou a criar espaços verdes, parques que absorviam a água da chuva e a filtravam naturalmente, recarregando os aquíferos. Ruas foram redesenhadas com pavimentos permeáveis, permitindo que a água se infiltrasse no solo em vez de correr para os bueiros. Árvores, muitas árvores plantadas trouxeram o passaredo e os demais animaizinhos afugentados pela onda insustentável provocada pelos devaneios tresloucados que havia possuído a cidade. Ela comprometeu-se a cuidar de sua gente e de seus recursos tornando-se um exemplo de resiliência e sabedoria.
E, à medida que a cidade se transformava, algo mágico acontecia. O clima parecia mais ameno, as estações de chuva e seca mais equilibradas. As inundações se tornaram apenas memórias distantes, e a cidade florescia com vida. Que a breve crônica que conta a história desta cidade fictícia, nos inspire a reconhecer que a natureza é nossa aliada, não nossa inimiga, e que, ao respeitá-la e cuidar dela, fazemos as pazes com a terra que chamamos de lar. Tem alguma dúvida ou quer sugerir um tema? Escreva para mim no Twitter ou Instagram: @helenadegreas.
*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.
Comentários
Conteúdo para assinantes. Assine JP Premium.