Sobre distribuição de barracas, vagas em albergues e ‘tiny houses’: como resolver o problema de moradia no país?

População de rua é heterogênea: famílias inteiras, casais sem filhos, adultos e jovens que lá estão por razões alheias; não há como atender a todos da mesma forma

  • Por Helena Degreas
  • 08/02/2022 15h09 - Atualizado em 08/02/2022 15h48
Divulgação/Prefeitura de São Paulo Projeto da prefeitura mostra pequenas casas em um gramado Programa Reencontro, da Prefeitura de São Paulo, planeja alocar famílias em casas de 18 m²

Dados da pesquisa publicada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em março de 2020 estimaram que, até aquela data, cerca de 222 mil pessoas encontravam-se em situação de rua no Brasil. Os números refletem a ineficácia histórica dos governos federal, estaduais e municipais na criação de políticas públicas destinadas à reintegração social e econômica dos cidadãos em situação de vulnerabilidade social. Apesar das críticas referentes ao método utilizado para a realização do Censo da População em Situação de Rua na capital paulista, os resultados mostram que houve um aumento de 30% do grupo de pessoas que habita em praças, largos, marquises, parques e calçadas, sob viadutos e pontes, canteiros centrais de sistemas viários e demais logradouros públicos. Basta andar pelas ruas e acompanhar a entrega de alimentos diários realizados pelas organizações não governamentais, igrejas, empresas, bares, restaurantes e indivíduos para presenciar números muito maiores. É uma crise humanitária espalhada por todo o território nacional. Os cidadãos estão lá porque não conseguem pagar aluguel. Foram despejados.

De acordo com a pesquisa, os motivos que levaram as pessoas a morar nas ruas foram a perda de trabalho/renda (28,4%), os conflitos familiares (34,7%) e a dependência de álcool e outras drogas (29,5%). Os dados de educação, por sua vez, mostram uma realidade diferente daquela que habita o imaginário da população: 93,5% das pessoas em situação de rua na cidade frequentaram escola, 92,9% sabem ler e escrever, 4,2% concluíram o ensino superior, 21,4% têm ensino médio completo e 15,3% concluíram o ensino fundamental. O desejo de sair das ruas é da imensa maioria: 92,3% pedem ajuda para se recolocar socialmente. A maioria sabe ler e escrever, frequentaram o ensino fundamental, médio e faculdade. Boa parte faz bicos, outros têm carteira de trabalho assinada. 

Os dados, mesmo que errando para menos, por si só são um “tapa na cara” para qualquer gestor público. O presidente da República poderia disponibilizar os recursos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) ou realocar verbas para, juntamente com governadores e prefeitos, colaborar na questão. Enquanto isso, a pastora e ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, em vez de aplicar seu tempo na implementação de programas sociais voltados às famílias vítimas de desastres climáticos e de perda de empregos em função do desastroso programa econômico federal — do qual ela também é parte integrante —, percorre o território em busca de casos que comprovem a ineficácia das vacinas em crianças e perscruta as redes sociais, em especial o vilão da vez (o TikTok, do qual parece ser ativa usuária), associando-o à gravidez precoce de adolescentes. Sem palavras para expressar tamanha tacanhice. Falta de vontade política ou de capacidade propositiva para a redação de políticas sociais capazes de prover condições de habitação digna em situações emergenciais?

As políticas habitacionais encontram-se fortemente atreladas à construção civil e à financeirização e são construídas sob a lógica da aquisição da casa própria. São tratadas como mercadorias, produtos com valor de mercado, embora a Constituição brasileira defina a moradia como direito e serviço, sendo incapazes de incorporar usuários em situação de rua. Como mostra o Censo, nas ruas estão famílias inteiras, casais sem filhos, adultos e jovens que lá estão por razões alheias à sua vontade: falta de renda, violência, desestruturação familiar ou são dependentes químicos. É uma população heterogênea, ou ainda, são pessoas e famílias com necessidades diferentes. Não há como atender a todos da mesma forma. O site da Prefeitura de São Paulo chama a atenção para a nova realidade. Nela, o contingente em situação de rua já é maior que o número de habitantes da maioria das cidades do Estado. Para se ter uma ideia, dos 645 municípios paulistas, 449, ou 69,6% do total, têm quantidade de moradores menor do que a população em situação de rua aferida na cidade de São Paulo. Se existem recursos públicos para bancar infraestrutura, equipamentos, servidores públicos, prefeitos, vereadores e toda a burocracia necessária para manter municípios que tem população inferior à atual população de rua — e cuja manutenção depende, em muitos casos, de receitas vindas da União e Estados para seu custeio e sobrevivência —, por que não se utilizam os mesmos recursos para custear políticas públicas para prover as necessidades habitacionais da população vulnerável quando em situações emergenciais? 

A revista “Veja São Paulo” publicou recentemente uma matéria sobre uma ação do Programa Reencontro. Nele serão construídas 330 minicasas provisórias de 18 m², que ocuparão um terreno do Detran, destinadas à famílias com crianças em situação de rua e que serão entregues, se tudo correr bem, em dezembro de 2022. Até lá, permanecerão todos habitando as ruas. A planta é até simpática, pois tem tudo o que um apartamento do tipo “studio” necessita para uma família: estação para cozinhar, local para dormir, onde pendurar uma TV, uma mesinha e armários. Sanitários e a lavanderia serão equipamentos de uso coletivo. Não vi a proposta de implantação das unidades no terreno. Tem a aparência das “tiny houses” apresentadas em programas de TV estadunidenses que destacam o caráter minimalista e despojado dos clientes que, incapazes de pagar a locação de um imóvel comercial em meio urbano, optam por morar em ambientes de até 30 m², com banheiro, quarto, sala, cozinha, local para máquina de lavar e secar, armários, varanda, churrasqueira, painéis solares e utilização de águas pluviais. Para aqueles mais exigentes, tem até casinha de cachorro. Móveis, as casinhas podem ser acopladas nos carros e levadas para qualquer lugar público que não cobre pela área ocupada. Pertencem aos moradores. Procuram por locais sem custos para morar. Diferentemente das “tiny houses” originais, que utilizam placas de madeira, drywall e são definitivas, as nossas serão construídas com placas e materiais recicláveis. Além de provisórias, elas dependerão de manutenção constante por parte do poder público. O problema? Novamente investimento de dinheiro público para construções provisórias, distantes dos locais de vida da população. Não se resolve a distração de quem está na rua agora só no final do ano. 

Persiste a visão equivocada para o tratamento de situações emergenciais. O padre Júlio Lancelotti afirma que os efeitos da economia, em recessão, levarão mais pessoas às ruas. Eu acrescentaria que os desastres provocados pelos extremos climáticos e econômicos levarão a mais perdas materiais da população empobrecida que, nas ruas, continuará sem acesso ao atendimento de suas necessidades emergenciais. Vagas em albergues, distribuição de barracas na rua ou, novamente, a predominância da “construção”, só que agora provisória, de unidades do tipo “tiny houses à brasileira” não serão capazes de reintegrar tanta gente.

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.

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