Sobrevivência urbana: como não virar meme no ‘Twister’ das calçadas
É possível afirmar que, ao olharmos ao nosso redor que na disputa pelo espaço público, as pessoas perderam feio o seu naco de chão

Há quem diga que as calçadas são o palco da democracia. É lá que a relação entre os espaço e entre os cidadãos acontece. O lugar em que teoricamente as pessoas têm direito à fruição da vida pública. Nossos passeios — vulgarmente conhecidos como calçadas —, quando existem, são estreitos, como se fossem uma declaração de que essa cidade é pequena demais para pessoas e carros. É possível afirmar que, ao olharmos ao nosso redor que na disputa pelo espaço público, as pessoas perderam feio o seu naco de chão.
Aos transeuntes — também chamados de pedestres, eventualmente cidadãos — restam algumas migalhas de terra “segura”, onde se trava uma batalha diária em que uma simples travessia sobre faixas transforma-se batalha diária em que uma simples travessia sobre faixas transforma-se no espetáculo de vida ou morte, digno de um documentário de vida selvagem. Afinal, as calçadas — esses trechos de terra batida, cerâmica esburacada ou concreto sofrido — são invadidas por carros como se fossem extensões naturais das garagens. “Vou só ali na farmácia!”, justifica o motorista, enquanto sua SUV reivindica 80% do espaço destinado a idosos, cadeirantes e sonhadores que ainda acreditam no direito de andar a pé.
Restam-nos pequenos refúgios de asfalto, onde jogamos uma inusitada versão do Twister urbano ou mesmo dançando uma “lambada da metrópole”: desviamos de cocôs “artísticos” depositados por pets cujos donos são mestres do ilusionismo (olhar pro céu + caminhada acelerada = sujeira evaporada!). Mereciam estar em espetáculos de Las Vegas.
Há também os postes, que surgem como armadilhas aos mais desavisados, andando na rua com seus fones em volumes que daria para dizer ser música compartilhada. E guarda-chuvas, ah, os guarda-chuvas, tão bem manejados por espadachins desajeitados — aqueles que, distraídos, transformam o objeto em arma branca, testando nossos reflexos de desvio num “MMA de calçada”, no qual o prêmio é sair com os dois olhos e sem nenhum hematoma.
E o que dizer dos arautos modernos? Aquelas pessoas dotadas de uma voz tão extraordinária e assuntos tão urgentes que precisam compartilhá-los em alto e bom som num ponto do ônibus lotado de gente exausta? “E AÍ EU FALEI PRA ELA QUE NÃO IA MAIS AGUENTAR AQUELE CHEFE CHATO E…” — enquanto cinquenta e três desconhecidos são involuntariamente arrastados para o drama particular daquela pessoa. Uma transmissão de novela em tempo real, com reviravoltas, personagens a mil e drama, muito drama. Esperar no ponto vira uma grande atualização do enredo (isso é, se tem a sorte de pegar a mesma pessoa, no mesmo ponto, alguns dias em sequência).
Além da guerra diária pelo nosso pedaço de calçada, pesquisas alertam que nosso tempo de foco encolheu mais que calça jeans na máquina de secar. A culpa é dos apps que sequestram 60 segundos de atenção em troca de toneladas de dopamina — a moeda corrente do século XXI. Resultado? Transformamo-nos em Brás Cubas 2.0 ou, ainda, zumbis digitais que, como diria Machado com uma pitada de ironia moderna, “guinamos à direita e à esquerda, resmungamos, tropeçamos em meios-fios”. Quem nunca esbarrou num jovem cambaleante, fones nos ouvidos, hiperativo, estressado, exausto e sem rumo, entoando “Evidências” em plena tarde de terça-feira? Se o Bruxo do Cosme Velho visse essa cena, talvez atualizasse sua famosa frase: “A humanidade não é um mal-entendido… É um TikTok mal editado”. Estaria ele apresentando o futuro?
O cambalear, digno do andar sem atenção do século XXI, é uma ameaça à saúde mental da já conturbada convivência coletiva urbana. Quantas pessoas já não deram de cara com um poste plantado no meio da calçada? Quantas já não tropeçaram num meio-fio detonado pela falta de manutenção pública? A cidade vira um tabuleiro de Detetive, e a próxima vítima pode ser qualquer um, inclusive você, leitor.
O mais fascinante desse espetáculo diário é como, aos poucos, essas pequenas violências se normalizam. Aquilo que deveria ser extraordinário, torna-se comum, corriqueiro. A empatia vai sendo erodida em doses homeopáticas, tão sutis que mal percebemos: apensas incorporamos naturalmente E assim, a cidade se transforma num palco onde cada um defende seu pequeno território, seu minúsculo conforto, sem perceber que estamos todos socialmente conectados, interagindo na marra e aguentando a desfaçatez daqueles que olham o mundo a partir de seus interesses. O outro não existe. Ou, ainda, está lá para satisfazer minhas necessidades.
Talvez o verdadeiro teste da civilização não esteja nos grandes feitos heroicos, mas justamente nos microgestos do cotidiano. Na gentileza de estacionar sem bloquear a passagem alheia. No volume adequado das conversas em espaços públicos. No ato simples de recolher o que o pet deixou para trás, sem transformar o mundo em lixeira particular. Em segurar o guarda-chuva com consciência de que o espaço é compartilhado — pasmem! — por um coletivo que também existe.
Quem sabe, um dia, a cidade deixe de ser um campo de batalha onde as micromaldades cotidianas desapareçam para, enfim, virar espaço de convivência. Até lá, seguimos desviando de cocôs, tropeçando em postes e, com sorte, enxergando uns aos outros — mesmo que só pelo canto do olho, entre uma notificação e outra do celular.
Regras do jogo
No jogo do Twister urbano: quem pisar em cocô perde pontos, quem desviar de guarda-chuva ganha vida extra e chefe, no final, é o motorista que estaciona sobre a calçada.
*A crônica foi escrita com a colaboração do Victor Massao, Coordenador e Professor do Ateliê de Artes e Ofícios do Jockey Club de São Paulo (Elysium Sociedade Cultural), fotógrafo, documentarista, arquivista e em breve, arquiteto e urbanista.
*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.
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