Solidão nas cidades deveria ser tratada como questão de saúde pública

Cidades que segregam pessoas por renda, por perfil cultural e por distância apresentam-se disfuncionais, isolam pessoas e aumentam a sensação de “não pertencimento”, levando à ampliação da sensação de solidão

  • Por Helena Degreas
  • 17/01/2023 15h28 - Atualizado em 18/01/2023 08h12
Unsplash/Engin Akyurt Mulher usando máscara olhando para baixo De acordo com relatório publicado pela Comunidade Europeia em 2021 mostra que a proporção de entrevistados que se sentiam sozinhos praticamente dobrou após o início do surto de Covid-19

“A solidão e a sensação de não ser desejado é a pobreza mais terrível.” (Madre Teresa)

 

Um artigo publicado numa postagem do Twitter semana passada chamou minha atenção. Nele, @dirkjanjanssen, que se define como um “Holandês errante e Diplomático digital”, descreveu sua experiência num “caixa Kletskassa” que, numa tradução livre, poderia ser um “caixa para bate-papo” ou algo parecido. Embora a proposta exista desde 2019, a rede de supermercados holandesa Jumbo decidiu ampliá-la recentemente graças ao sucesso em áreas onde a solidão é um problema. Para além dos caixas de autoatendimento e dos tradicionais, a rede de supermercados Jumbo disponibilizou cerca de 200 “cajas lentas” para atendimentos de pessoas que desejam conversar. Em seu site oficial, a Jumbo CCO Colette Cloosterman-Van Eerd afirma que a rede de supermercados tem um papel central na sociedade e que ações como a implantação de “check-outs de bate-papo” reafirmam a imagem das lojas como ponto de encontro e que esta é uma forma de fazer algo para combater a solidão. Estimular a interação entre pessoas é um caminho. Por que não?

Esta ação encontra-se alinhada a uma série de programas e ações internacionais que compõem políticas públicas de Estado para o atendimento à saúde mental da população urbana voltadas à redução dos impactos negativos causados pela solidão em grandes centros urbanos. Aqui no Brasil, dados do IBGE apontam que cerca de 14% dos cidadãos moram sós. Não necessariamente significa que sintam-se solitários. Eu mesma adotei a solitude (que, diferente da solidão, foi escolhida por mim e não me causa sofrimento algum) como meio de sobrevivência ao caos digital promovido pelas redes de comunicação e informação que, com seus algoritmos tentando ler e adivinhar o que desejo, criaram uma bagunça imensa no meu mundo digital, soterrando-me com detritos e lixos que infectam meu ser e me deixam perturbada, deprimida. No meu caso, trata-se de uma escolha individual. Para alguns, a solidão não se constitui numa escolha. Ela é reflexo da insatisfação resultante da qualidade dos relacionamentos sociais em diversos contextos que compõem nossas vidas, sejam eles pessoais, profissionais, familiares ou todos eles misturados. Tais relacionamentos são construídos e reconstruídos ao longo da vida e dependem de vários fatores, inclusive, urbanos. Cidades que segregam pessoas por renda, por perfil cultural e por distância apresentam-se disfuncionais, isolam pessoas e aumentam a sensação de “não pertencimento”, levando à ampliação da sensação de solidão. 

A solidão e o isolamento social prejudicam a saúde mental e física das pessoas bem como esgarçam a vida comunitária, levando governos – não os nossos, infelizmente, a adotarem estratégias de intervenção eficazes no âmbito das políticas públicas. As restrições impostas pela mobilidade e distanciamento social geraram efeitos colaterais não intencionais e cobrarão, muito em breve, um preço alto depois que o vírus virar uma “gripezinha” (ainda não aconteceu), como descreve o relatório “Loneliness in the EU – Insights from surveys and online media data” publicado pela Comunidade Europeia (2021).

Realizada por meio de questões e dados online, a análise dos resultados levou a uma visão geral sobre a sensação de solidão e isolamento social na Comunidade Europeia, oferecendo uma imagem das tendências recentes nos níveis de solidão autorrelatados e identificando as características sociodemográficas e geográficas predominantes associadas à solidão antes e durante os primeiros meses da pandemia de Covid-19. Os resultados são alarmantes. A pandemia ampliou um problema que já existia, apontando que a proporção de entrevistados que se sentiam sozinhos praticamente dobrou após o surto e que os adultos jovens foram os que mais sofreram com o isolamento.

Em 2018, o governo do Reino Unido criou o Loneliness Ministry (Ministério da Solidão). Na mesma época, publicou as estratégias adotadas para combater a solidão comprometendo-se a apoiar as pessoas no aprimoramento das relacionamentos sociais significativos, visando melhorar a saúde física e mental das pessoas. Embora a criação do Ministério tenha sido alvo de piadas, a questão já era objeto de preocupação de governos desde 2017, quando foi iniciada uma pesquisa utilizando dados coletados em diversas organizações sociais e de saúde voltadas ao bem-estar e atendimento da população em geral. A campanha #LetsTalkLoneliness foi lançada em 2019 para ajudar a aumentar a conscientização das pessoas e combater o estigma da solidão visando alcançar maior interação e coesão social comunitária e em outras instâncias.

A frase inicial postada logo no início da coluna, foi extraída do site ministerial. Por ela depreende-se a relevância dada pelo governo à questão. Estimular a interação entre pessoas nas cidades ocorre nos espaços públicos. Neles, a esfera de vida pública, a realização da interação social acontece. Em cidades cujo planejamento urbano é ruim e resulta em transtornos cotidianos para a população usuária dos seus serviços, infraestruturas e equipamentos públicos, é natural o impacto negativo na saúde mental coletiva, ampliando a sensação de solidão. Como efeito colateral, a sensação se estende a todas as esferas que compõem nossa vida pública e privada, interferindo na percepção de pertencimento, no envolvimento nas questões comunitárias e todas as outras que são parte de nossa existência social. Não ocorre apenas com pessoas “que festejaram mais aniversários”, como diz um colega meu, ocorre em todas as fases da vida. A sensação de solidão ocasionada pela exclusão, pela segregação social, espacial, econômica, cultural entre outras, pode afetar a todos.

O mau planejamento das cidades pode ampliar a sensação de solidão, tornando difícil para os indivíduos se conectarem uns com os outros. Por exemplo, um bairro com infraestrutura de transporte público capenga, cara, cujas conexões entre modais aumentam o tempo e o dinheiro investido na locomoção das pessoas dificulta, quando não impede, que pessoas se encontrem despretensiosamente, pelo prazer de passar alguns momentos jogando conversa fora. Espaços públicos repletos de áreas com bancos para sentar-se, sombras para abrigar-se do calor, iluminação ajustada para o flanar noturno, floreiras e ajardinamentos bem-cuidados em praças e parques, calçadas lisinhas que convidam e acolhem o caminhar desde aqueles que estão dando os primeiros passos àqueles que andam de braços dados com amigos, familiares ou cuidadores. A falta de moradias acessíveis voltadas à população socialmente vulnerável e de baixo poder aquisitivo é responsável pelo isolamento ao inviabilizar o aprimoramento de conexões e interações sociais. Isolamento compulsório causado pela segregação imposta por má gestão dos interesses do cidadãos significa, em terras brasileiras, solidão também. Vamos cobrar políticas públicas para o enfrentamento da sensação de solidão criada por cidades disfuncionais que segregam pessoas e inviabilizam a interação social à interação saudável entre seus cidadãos?

Tem alguma dúvida ou quer sugerir um tema? Escreva para mim no Twitter ou Instagram: @helenadegreas.

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.

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