Você já percebeu como a paisagem sonora identifica os bairros de uma mesma cidade?

Os sons definem nossa cultura, mostram quem somos; os franceses, por exemplo, decidiram preservar a badalada manual dos sinos como patrimônio imaterial da humanidade

  • Por Helena Degreas
  • 03/05/2022 09h00 - Atualizado em 03/05/2022 11h28
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Clayton de Souza/Estadão Conteúdo - 30/08/2012 Praça Vilaboim com uma grande árvore, dois idosos sentados em um banco e uma banca de jornal Em bairros centrais de São Paulo como o Higienópolis, o som de automóveis foi substituído por ruídos do cotidiano durante o isolamento social

O som, mais do que um fenômeno da física, é capaz de materializar relações políticas urbanas, expondo os contextos, permitindo a compreensão das relações comunitárias e dos grupos sociais que compõem a paisagem sonora de ruas e bairrosA paisagem sonora caracteriza-se pelos sons que envolvem o ambiente que nos rodeia e transforma-se, junto com as mudanças, nos modos de vida da sociedade. Diferentemente da paisagem vista por meio de objetos, a paisagem sonora registra um evento que foi escutado por alguém. Embora de difícil representação, é possível registrá-lo definindo a identidade de um lugar. Quem não lembra de sons que ocorrem apenas em alguns lugares específicos? Num evento científico em que fui apresentar uma pesquisa, em Istambul, na Turquia, os sons das cinco chamadas provenientes das mesquitas para as orações dos muçulmanos se tornaram inesquecíveis, mágicos. É algo que ainda povoa meus pensamentos. Para além das roupas, dos hábitos e da arquitetura, os cheiros das comidas nas ruas e o sons das mesquitas são Istambul.

Os sons definem nossa cultura. Mostram nossa realidade, quem somos. Tão importante é o tema que, em 2021, o parlamento francês levantou uma questão que, para nós, pode parecer inusitada: podemos evitar que nossos sons, como o canto dos galos e o badalar dos sinos, desapareçam? Para os franceses, os territórios rurais, em especial, são mais do que cartões postais compostos por paisagens verdejantes. O que lhes dá a identidade é a profundidade e a complexidade da realidade, que inclui também os cheiros dos currais, a luz que incide sobre os pastos e demais elementos sensoriais. Daí a necessidade de preservar a badalada manual dos sinos como patrimônio imaterial da humanidade para manter a herança sonora.

A pandemia e o isolamento social evidenciaram as diferentes identidades sonoras que formam a paisagem urbana de nossas cidades. Os sons dos animais, dos fenômenos da natureza — com suas chuvas, ventos, trovões —, os sons das obras criadas pelos seres humanos para atender as suas necessidades de locomoção, de habitação, além dos sons de suas falas, risadas, cantos e caminhadas são algumas das manifestações cuja percepção foi mais ou menos acentuada nos últimos anos. Pesquisas realizadas em diversos países registraram as transformações desde o início do isolamento, incluindo o Brasil. Mas que resultados tivemos? A paisagem sonora se manifestou de maneira homogênea nas cidades?

Em maio de 2020, a Biblioteca Pública de Nova York lançou um álbum online intitulado Missing Sounds of New York, composto por oito faixas de ruídos urbanos que andavam sumidas do cotidiano dos nova-iorquinos durante o período de isolamento social provocado pela pandemia da Covid-19. Com o objetivo de conectar as pessoas com os sons familiares da vida urbana, o álbum foi realizado em parceria com uma agência de comunicação, a Mother New York, e é composto por oito faixas de ruídos urbanos que dão identidade à cidade e criam ambientes familiares. O som dos passos de pessoas em movimento, uma apresentação de dança no metrô, pombos arrulhando, pessoas conversando, alguém folheando um livro na biblioteca, taxis buzinando são algumas das paisagens sonoras urbanas que pretendiam levar a uma experiência imersiva, conectando pessoas em torno de sons familiares da cidade. 

Se, por um lado a agência de comunicação propiciou certo conforto aos cidadãos por meio de lembranças sonoras da cidade agitada, da biblioteca não tão silenciosa ou até dos shows subterrâneos nas estações de metrô anteriores à pandemia e ao afastamento social, o projeto Janelas Desobedientes, coordenado pela professora Giselle Beiguelman (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo) coletou um banco de dados com quase 2 mil áudios que registraram as mudanças ocorridas na paisagem sonora durante o mesmo período de isolamento social. 

O resultado apontou que as regiões centrais da cidade de São Paulo em que prestadores de serviços puderam realizar suas atividades profissionais predominantemente em home-office foram os locais mais silenciosos, que permitiram ouvir até o canto dos pássaros. Bairros como Higienópolis, Jardins e Pinheiros são exemplos disso. O som dos motores dos automóveis, motocicletas e do transporte público foi substituído por um aumento dos ruídos do cotidiano, marcados pelo som de crianças brincando e das músicas tocadas em outros lares. Em entrevista para o Jornal da USP, Beiguelman afirma que o som se projeta de forma particular em cada região da cidade e que documenta a pluralidade e a complexidade que o isolamento social projetou no espaço e na cultura urbana. O som é um marcador social da distribuição socioeconômica, afirma a pesquisadora, cujos dados sonoros obtidos pela pesquisa em regiões periféricas corroboram a opinião da arquiteta e urbanista Raquel Rolnik (professora e pesquisadora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP). Para que cerca de 30% das pessoas pudesse ficar trabalhando em meio virtual e protegidas da infecção, um número imenso de trabalhadores precisou se locomover para levar comida, limpar, transportar e realizar atividades cujo tipo de trabalho é inviabilizado pelo formato não presencial. Nas periferias urbanas, os sons permaneceram praticamente inalterados, uma vez que a vida de trabalho, com seus ruídos e barulhos cotidianos, não sofreu alterações, apesar da necessidade de afastamento e isolamento social durante a pandemia. 

A comparação entre as pesquisas e a ação do parlamento francês é inviável frente ao contexto de cada país e autor. Na França, o parlamento almeja proteger os sons das badaladas manuais dos sinos e o canto dos galos porque eles integram a formação cultural daquele país. É como se o badalar dos sinos das igrejas de Salvador ou das cidades históricas mineiras, por exemplo, representasse a identidade local juntamente com suas igrejas, missas e procissões. Trabalho técnico realizado Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) chegou a registrar os toques, repiques e dobres nas cidades de Ouro Preto, Mariana, Catas Altas, Congonhas do Campo, Diamantina, Sabará, Serro e Tiradentes a pedido das comunidades locais em 2001. Não tratou à época a questão do som como patrimônio imaterial. Já no sentido oposto e à título de ilustração quanto à civilidade e cultura que permeiam os corredores do poder público municipal, em 2014, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo decidiu que as igrejas deveriam seguir uma lei que prevê que os sinos toquem, no máximo, 60 segundos seguidos e apenas para a “assinalação das horas e dos ofícios religiosos”. Não encontrei o desfecho do processo no TJ relatado pela desembargadora Maria Fernanda Toledo contra a Mitra Arquidiocesana de São Paulo, que se via obrigada a pagar uma multa à prefeitura por extrapolar em 16 segundos o limite permitido em lei. Não consigo sequer comentar a qualidade do processo e da relatoria.

A Biblioteca Pública de Nova York e seu catálogo on-line proporcionou uma experiência imersiva, interessante, que registrou sons que caracterizam a cidade norte-americana e sua paisagem sonora. Eu, em especial, gostei do som do vidro quebrado e das páginas de livros em meio ao burburinho. Lembrei da City Symphony do filme “August Rush”, de 2008. Nele, os sons da cidade são a matéria prima para a composição de uma sinfonia urbana. Quanto à cidade de São Paulo, a pesquisa Janelas Desobedientes apresentou uma paisagem sonora de uma cidade desigual, segregada, fragmentada por espaços com mais, menos ou nenhuma infraestrutura urbana e equipamentos públicos. Expôs a cidade cujo silêncio e condições de trabalho remoto só foram permitidos por aqueles que, nas periferias das cidades, continuaram trabalhando durante a pandemia. 

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.

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