E se Bolsonaro fizesse como Macron e mandasse para a cadeia repórter que fotografa policial em ação?

Assembleia francesa aprova artigo de lei que proíbe imagens de policiais em manifestações; na França, é cada vez mais evidente o namoro com medidas autoritárias sob o disfarce da racionalidade e do bem comum

  • Por J.R. Guzzo
  • 28/11/2020 10h00
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EFE/Ian Langsdon emmanuel-macron-amazonia.jpg Artigo da Lei de Segurança Global defendido pelo presidente francês Emmanuel Macron tem sido alvo de críticas

Bem pouca gente ouviu falar muita coisa a respeito da história que será contada a seguir — é praticamente impossível, hoje em dia, ler, ouvir ou ver informações sobre fatos que estorvam a visão do certo e do errado que existe na cabeça da mídia mundial. Mas o fato é que acaba de ser cometido na França um ataque especialmente vicioso, pervertido e hipócrita contra a liberdade de expressão. Em perfeita simetria com a intenção dos seus autores, é também uma missa cantada para celebrar a submissão do indivíduo ao Estado — e promover um novo avanço da autoridade pública em sua escalada para tornar-se o elemento mais valioso, e mais privilegiado, da sociedade francesa. Foi aprovada, agora neste final de novembro, uma prodigiosa sequência de atos destinados a proteger a polícia dos cidadãos em geral — e sobretudo dos jornalistas. Você não leu errado. É isso mesmo: o governo do presidente Emmanuel Macron, com o apoio maciço dos deputados da Assembleia Nacional, declarou que a população se tornou um perigo para o Estado francês e para os seus agentes. Em consequência, tem de ser tratada com repressão. A desculpa é aumentar a segurança dos policiais no combate ao terrorismo — e punir os cidadãos com sanções penais caso a polícia decida que está sendo colocada em risco por eles.

A partir de agora, por força do Artigo 24 da Lei de Segurança Global que acaba de ser aprovado, as pessoas estão sujeitas a um ano de prisão e a € 45 mil de multa (ou perto de R$ 300 mil) se divulgarem “a imagem do rosto ou de qualquer outro elemento de identificação de um policial ou de um gendarme em ação de serviço”. Ou seja: os repórteres-fotográficos, ou quem mais estiver com a câmera do seu celular ativada, ficam legalmente proibidos de registrar, por exemplo, imagens de policiais baixando o cacete em qualquer tipo de manifestação pública, ou prendendo cidadãos suspeitos de não-observância do “distanciamento social”. Para amarrar a coisa pelos sete lados, o Artigo 24 também exige que os veículos de comunicação apaguem os rostos dos policiais de qualquer foto ou vídeo que porventura vierem a obter e a publicar. O veneno contido na lei teve efeito imediato: dois jornalistas já foram detidos ao cobrir manifestações de protesto contra o próprio Artigo 24. Está claro que o propósito do governo Macron, dos deputados que lhe dão apoio e dos sindicatos de policiais é reprimir os cidadãos e jornalistas que querem (ou precisam) registrar atos de violência ilegal e de arbitrariedade cometidos pela polícia — e não proteger seus agentes do terrorismo. O ministro do Interior, que foi o principal corretor público da nova legislação, admitiu que não tem nenhuma estatística a respeito de casos em que a captação e divulgação de imagens de policiais possa ter provocado algum ataque contra eles. Também não soube informar quantos funcionários da polícia, até hoje, foram importunados socialmente por verem a sua atividade divulgada em público. O que sobrou, no fim das contas, foi a prisão e a multa.

E se Bolsonaro ou Trump propusessem algo parecido com o tal Artigo 24?

A lei diz que as punições devem se limitar aos casos onde houver a intenção deliberada, por parte de quem gravou as imagens, de atentar contra a “integridade física ou psíquica” dos policiais — mas, na prática, é a própria polícia quem vai decidir se a imagem foi captada com malícia ou de forma inocente. O que você acha que vai acontecer na vida real? No caso dos repórteres-fotográficos, por exemplo: sua função profissional inclui, obrigatoriamente, o registro da presença da polícia e das ações praticadas por ela durante uma manifestação pública, e sua intenção é mesmo divulgar as imagens que colheu. Como é que fica, então? Se a imagem com o rosto do policial for publicada no jornal ou na televisão, ele estará sujeito, por definição, a um atentado terrorista. Para cumprir a nova lei, portanto, o jornalista não poderá mais fotografar ou filmar livremente nenhuma manifestação onde a polícia esteja presente. Para piorar as coisas, o governo disse que os jornalistas deveriam se “credenciar” perante as autoridades policiais para cobrirem atos públicos em que haverá presença das forças de segurança — coisa que não está escrita em nenhuma lei da França. Houve o cuidado de dizer que esse pedido de licença não é “obrigatório” — mesmo porque isso seria tão flagrantemente contra a Constituição francesa que acharam melhor não forçar a mão. Mas as autoridades lembraram, ao mesmo tempo, que o “credenciamento” tem a vantagem de permitir que a polícia forneça “proteção” aos repórteres durante as manifestações. Juram que isso não é uma ameaça velada — e ficaram de fazer uma emenda dizendo que a proibição de registrar as imagens deve ser feita “sem prejuízo do direito de informar”. Também acenaram com o estabelecimento de critérios mais claros para caracterizar a intenção de atentar contra a integridade dos policiais. Nenhuma das duas coisas vai mudar nada.

A pergunta que interessa, depois disso tudo, é a seguinte: existe no Brasil alguma coisa parecida com esse Artigo 24? Não existe e nunca existiu — na verdade, é provável que nunca tenha passado pela cabeça de ninguém fazer algo assim por aqui. Imagine-se, agora, o que o presidente Macron, seus admiradores e as classes intelectuais, jornalísticas e bem-educadas da França estariam dizendo se o presidente Jair Bolsonaro mandasse para o Congresso Nacional um projeto de lei propondo exatamente o que o governo francês acaba de fazer. (Pior: e se a ideia viesse de Donald Trump? É melhor nem pensar.) No mundo das ideias, o Brasil visto da França de Macron e dos Estados Unidos de Joe Biden é um inferno político onde a população é oprimida diariamente por uma ditadura militar-fascista, que persegue os índios, os negros, os gays, as mulheres e os pobres — além de queimar a Amazônia e praticar o genocídio, porque o presidente não usa máscara, promove “aglomeração” quando fala em público e recomenda o uso da cloroquina. No mundo dos fatos, a França está jogando na cadeia repórteres que fotografam ou filmam policiais em manifestações de rua.

A nova “Lei de Segurança Global” é uma aula magna sobre a progressiva e inquietante descida da França em direção ao totalitarismo estilo 2020 — essa mistura pretensamente fina de supressão das liberdades individuais com a transferência cada vez maior das decisões para a esfera dos altos e médios servidores das máquinas estatais, das nações ou das entidades “globais”. (A propósito: a proibição de captar imagens leva o nome de “Lei Global”.) Não é algo que esteja acontecendo só na França. Na Alemanha, praticamente no mesmo dia, a maioria governista que controla o Parlamento aprovou a supressão de direitos individuais inscritos na Constituição alemã para colocar em vigor a sua “Lei de Prevenção das Infecções”, com restrições que vão da suspensão de liberdades por causa do lockdown até a vacinação obrigatória. (Levantaram-se, na hora, lembranças da “Lei Habilitante” de março de 1933, na qual esse mesmo Parlamento, então chamado “Reichstag”, deu plenos poderes a Adolf Hitler.)

É o avanço, nas democracias tidas como as mais avançadas do mundo, da ideia geral de que as pessoas, no fundo, não sabem o que é bom para elas; para não serem enganadas pelo “populismo”, que as leva a escolher indivíduos inconvenientes para os governos, devem se submeter a um novo “contrato social”. Por esse contrato, a autoridade, basicamente, deve ficar a cargo dos que têm “qualificação técnica” para governar — as camadas superiores dos ministérios disso ou daquilo, os altos burocratas dos organismos internacionais, do FMI à Organização Mundial da Saúde, os detentores do saber universitário e os funcionários públicos que se encontram entre um galho e outro dessa árvore toda. À população cabe cumprir ordens — da proibição de fazer uma imagem à obrigação de tomar vacina. É um namoro cada vez mais incontrolável com a tirania — sob o disfarce da racionalidade, da competência administrativa, do bem comum, da busca da igualdade, da justiça social, da ajuda às minorias, aos imigrantes, aos pobres e outras lorotas. Trata-se, na verdade, da maior fraude ideológica em curso no mundo de hoje. Ninguém, no fundo, está interessado em ajudar imigrante nenhum. O que os burocratas que ocupam bons lugares no aparelho estatal estão realmente querendo — seja nos países, seja nos órgãos transnacionais — é mandar. Quanto mais mandarem, mais seguros estarão nos seus altos salários, seus cartões de crédito “corporativos”, suas aposentadorias com remuneração integral e o resto da festa. Seu lema é: “Cada vez mais governo, mais ‘protocolo’ e mais poder para quem não foi eleito — e cada vez mais obediência por parte dos demais”. A própria aprovação da Lei de Segurança Global, em si, é um prefácio para esse mundo escuro que está se formando nas nações mais bem sucedidas do mundo. A Assembleia Nacional da França tem 577 deputados. Para a sessão em que o seu Artigo 24 foi aprovado compareceram apenas 170, ou 30% do plenário total — e a votação acabou ficando em 146 a favor e 24 contra. Para o que serve, então, um Parlamento desses? Parece o Congresso da Venezuela, de gravata Hermès e bolsa Vuitton. A reação dos franceses, ao mesmo tempo, foi de uma apatia capaz de lembrar a postura geral dos chineses diante da ditadura em vigor em seu país.

Na China, há uma espécie de “contrato social” que diz o seguinte: “Nós damos comida, trabalho, roupa e iPad para vocês. Em compensação vocês obedecem”. Ninguém precisa dizer que França e China são coisas diferentes; até uma criança com dez anos de idade sabe disso. Mas chama a atenção o fato de haver paralelos entre os dois países, em matéria de se comprar o silêncio da população. Na França, a tendência é de se conformar com as decisões de “l’État” por conta do salário-desemprego, dos “benefícios sociais”, das verbas para a família, dos subsídios para o agricultor, para o pequeno empresário, para o grande empresário, da ajuda disso, do auxílio daquilo, dos “direitos adquiridos”, da meia entrada e, mais do que tudo, dos privilégios da burocracia estatal. Faz uma tremenda diferença, num país que tem hoje 5,5 milhões de funcionários públicos — cerca de 8% da população nacional, e nada menos do que 20% da população economicamente ativa (ou um em cada cinco franceses), descontando-se aí os 3 milhões de desempregados atuais. Para chegar nesse nível, o Brasil teria de ter entre 17 milhões e 18 milhões de servidores públicos; temos 12 milhões, nos três níveis. É o bioma ideal para o cultivo de ditaduras do modelo liberal-social-democrático-equilibrado-centrista-progressista-europeu-civilizado que tanto encanta as classes intelectuais do Brasil de hoje, nesse grande arco que vai dos beneficiários do Bolsa Ditadura a Luciano Huck, passando pelo DEM, por Benedita da Silva e por outros colossos da política nacional. Se é bom para a França, deve servir para o Trópico.

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