Projeto de lei do mercado de carbono pode impactar o agro; entenda

Projeto da senadora Leira Barros deve ser votado no Senado 

  • Por Kellen Severo
  • 04/09/2023 14h03 - Atualizado em 04/09/2023 14h53
Reprodução/Jovem Pan News Frame do programa Hora H do Agro Daniel Vargas, coordenador do laboratório de bioeconomia da Fundação Getúlio Vargas, falou sobre o PL da senadora Leila Barros

A Comissão de Meio Ambiente do Senado deve votar em breve um projeto de lei da senadora Leira Barros que regula o mercado de carbono no Brasil. O texto, que conta com o apoio do governo Lula, cria limites máximos para emissões de gases e pune quem ultrapassar essas cotas, com multas, suspensão total ou parcial da atividade e perda de financiamentos. Para o coordenador do laboratório de bioeconomia da Fundação Getúlio Vargas, Daniel Vargas, a proposta deve impactar o agro. Confira detalhes na entrevista.

Quais são os pontos positivos e negativos desse projeto de lei da senadora, que conta com o apoio do governo? Eu acho que o principal ponto positivo é dar um passo em uma discussão que já vem há alguns anos avançando em vários países — e também no Brasil —, mas que nunca chegou nesse momento crítico de colocar o tema para uma decisão nacional. Eu acredito que o Brasil deve, sim, regulamentar um mercado de carbono. E tem uma razão para isso: nós somos um dos países mais preservados do mundo entre os grandes países tropicais, 60% do nosso maciço de terra ainda é coberto por florestas, boa parte nas atividades privadas, sem falar nas técnicas e tecnologias de produção sustentáveis que nós temos. Todo esse ativo verde precisa e deve se tornar um ativo econômico e o mercado de carbono pode ser um instrumento a esse serviço. Quais são os pontos negativos? Na maneira como esse PL está hoje estruturado, e nós esperamos que ele seja revisto, cria, na verdade, mais obrigações e ameaças do que de fato oportunidades de mercado. Cria um ambiente em que qualquer instalação acima de um teto fixo criado pela lei pode a qualquer momento virar alvo de uma espécie de “dívida ambiental”. Então, em vez de focar em criar mercados novos, o risco que se corre é de nós instalarmos uma espécie de ‘polícia’ que vai executar uma dívida ambiental do país.

Como o agronegócio está retratado neste projeto de lei? Como ele seria impactado por essas métricas de volume de CO2? Na versão anterior a este PL, que tinha sido aprovada em um relatório do senador Tasso Jereissati no final do ano passado, existia uma cláusula que dizia: “Nós vamos criar um mercado de regulação de emissões no Brasil e vamos deixar o agro de fora da regulação”. É dizer: “Nós vamos fixar metas de redução de emissões, mas o papel do agro nesse circuito será de ser uma parte da solução, ele poderá gerar créditos e, portanto, receber recursos se incorporar boas práticas”. O que o PL agora da senadora Leila nesta versão atual tem feito é de retirar essa situação do agro e simplesmente estabelecer uma regra geral. Na prática, quais são as possíveis consequências disso: primeiro, nós estamos falando de um mercado que pressupõe a legalidade. Cinquenta por cento das emissões brasileiras são desmatamento da Amazônia, é crime, está fora do mercado. A outra metade, que em potencial ingressaria nesse mercado genérico, quando nós olhamos de onde vem as emissões, em torno de dois terços são provenientes do chamado uso da terra, que é a agricultura e pecuária. Portanto, deixado da maneira como ele se encontra, pode servir como uma espécie de instrumento para regular e, portanto, fixar metas que constranjam em vez de mobilizar, apoiar, reconhecer, ajudar e envolver o agro nesse projeto de solução dos desafios do clima.

Da maneira como está, poderia haver uma vilanização do setor que produz comida no Brasil, já que essas métricas gerais não se encaixam com a característica específica do setor? Exato. Em vez de olhar para as oportunidades, para tudo que a produção sustentável no Brasil tem de bem, incluindo os estoques de reservas florestais dentro e fora da fazenda, as tecnologias novas inventadas pela ciência brasileira e a partir desse elenco, digamos assim, de estoques verdes criar um preço e um valor, o PL tende a caminhar na direção contrária. E olhar para a realidade de distribuir uma espécie de nota promissória e a partir de agora você terá que cumprir com essas obrigações sob o risco de pagar uma multa ou eventualmente sofrer sanções fixadas por uma comissão com poderes abrangentes estabelecida no governo federal. Evidentemente não parece que é o melhor caminho se o que a gente deseja e quer é tornar a natureza sócia da produção e tornar o produtor um sócio da natureza. O que nós podemos e queremos — eu creio que grande parte dos produtores, dos trabalhadores, dos investidores brasileiros querem — é olhar para essa nova dinâmica de investimento e de desenvolvimento verde como um espaço em que o Brasil pode ser protagonista e crescer, avançar, mostrar para o mundo como, na nossa realidade, temos virtudes que o mundo temperado não tem. Mas, da maneira como PL está, eu não estou convencido que a gente vai nessa direção.

O que precisaria estar nesse PL? Qual é a batalha mais importante para evitar que ele seja um instrumento de punição e não de recompensa pelo ativo ambiental? Eu acho que existem três conjuntos de medidas prioritárias. A primeira delas é estabelecer exatamente na lei quais serão as instalações reguladas. O que eu quero dizer com isso? É parte da responsabilidade do legislativo identificar que tipo de atividades ou de produções serão de fato impactadas por esse PL. O que nós sabemos na experiência internacional, nos Estados Unidos, no mercado da Califórnia, no mercado europeu e até na China, criado recentemente, é que o foco da regulação é no setor de energia. Ou melhor, em algumas instalações do setor de energia, que é um setor padronizado, que já tem uma ciência uma técnica de mensuração individualizada e que já tem uma experiência regulatória estabelecida. O setor de energia é uma espécie de serviço público em que não se dá um passo sem uma autorização e sem uma fiscalização estatal. No caso do agro, não é por aí. Então, ao se estabelecer quais são esses setores regulados, passa a dar clareza ao mercado de quem terá que cumprir responsabilidades. Alguns setores da economia brasileira poderiam ganhar. Os setores que são intensivos em energia, dado que o Brasil tem uma massa de energia muito barata e limpa comparado com o que acontece lá fora. Portanto, regular esse setor é, ao mesmo tempo, mostrar as suas virtudes. Por outro lado, no caso da produção de alimentos, não me parece que é o melhor caminho ir por essa via e, ao contrário, fazer o que também a Europa e os Estados Unidos têm feito, que é criar regulações que abrem portas para que o agro gere o crédito de carbono. A segunda medida fundamental é delimitar os poderes dessa comissão no Executivo com responsabilidade de normatizar e executar essa norma. Nós sabemos que o mercado de carbono é uma espécie de intervenção do Estado na economia. Para garantir a tranquilidade, a segurança jurídica e a própria credibilidade que esses poderes precisam ser bem delimitados. Do mesmo modo que ninguém imaginaria uma lei que desse ao Executivo poderes amplos para estabelecer um imposto para quem ele bem entender, pelo tempo que entender, do jeito que entender. Não parece o melhor caminho uma comissão com poder amplos para escolher uma realidade tropical quem agora vai pagar a dívida do clima que o Brasil criou para si.

Se o PL apresentado pela senadora, que tem o aval do governo, passar no Congresso, a gente estaria dando esse cheque em branco para condição de tributar, embargar, suspender financiamentos se a regra não for cumprida? Acho que as consequências podem ser estas. Mas, o que poderia acontecer é dar um poder para uma comissão definir nas atividades brasileiras quem, a partir de agora, passa a ter um ônus, de melhorar a sua produção, de fazer investimentos para reduzir emissões de carbono, informando periodicamente o estado de como está agindo para cumprir esses objetivos sob o risco de — esse é o ponto — ser penalizado de diferentes formas. Indiretamente pelo mercado, que passará agora a ter um instrumento legal para olhar e dizer “você não é verde, você não é sustentável”, abrindo espaço, inclusive, para judicializações. Mas, sobretudo, pelas próprias decisões do governo que teriam então a capacidade de pôr multas e eventualmente determinar o fechamento de atividades.

Eles estão falando sobre regulação do mercado de carbono, mas eles talvez esqueceram de mencionar que a gente não sabe nem como medir o carbono aqui. A gente tem técnicas que sejam facilmente usadas por cada agricultor? Nós ainda não estamos nessa fase. Nós sabemos que no agro cada atividade tem um conjunto de particularidades, e a ciência avança passo a passo para conseguir mensurar e individualizar essas características. A ciência, muitas vezes, é mais poderosa para enxergar à distância do que para individualizar os atributos da produção. Então, nós podemos ter bons motivos para saber qual é a emissão geral de um setor ou de um país. Mas isso não significa que nós conseguimos saber em cada propriedade o quanto exatamente aquela emissão se dá de uma maneira automática.

E como podemos fazer isso? Este é o impasse e o problema. O risco que nós corremos é de criar uma espécie de ameaça geral, de perseguição, sendo que no momento nós não temos ainda essa infraestrutura de conhecimento científico técnico e sequer me parece que o mercado de carbono é um mecanismo para isso. E é por essa mesma preocupação que nos outros países, o mercado de carbono não foi utilizado para regular o agro. Diga-se de passagem, existem imensas regulações sobre o agro na Europa, de todas as naturezas. Mas lá o mercado de carbono não é um deles. O que ele faz é o contrário, é olhar para o agro e dizer: “Se você desenvolver essa métrica, essa metodologia, se você conseguir individualizar a sua capacidade de produção e mostrar que sequestra carbono, vai ganhar dinheiro”. É uma forma de utilizar um instrumento para que o produtor, mobilizado com a ciência, avance nesse conhecimento, na qualidade do produto, e aqui é o contrário. Eu acho que ainda tem espaço para a gente fazer isso aqui. Essa luta ainda nós não perdemos.

Então você acredita que o mercado de carbono deveria ser regulado, e o agro ser parte do mercado de carbono, mas como um vendedor dos créditos? Além de todas as outras atividades sustentáveis que ele venha a desenvolver. Então, é uma maneira de você reconhecer os méritos verdes que diferenciam a nossa produção e uma maneira de se fazer uma convocação nacional. Produtores nacionais, como tem sido feito, na verdade, nas últimas semanas ou meses, em que o produtor, o Brasil produtivo, começou a olhar para agenda ambiental como oportunidade. Então, para que a gente caminhe nessa direção e concretize esse mérito ambiental em uma realidade econômica, eu acho que tem um espaço para o agro no mercado de carbono. Mas como um gerador de crédito, não jamais como um setor que vai ser tributado, ainda mais por critérios abrangentes e pouco claros como está hoje, na versão atual.

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.

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