Taxa agrícola por emissão de gases de animais gera críticas

Nova Zelândia abriu consulta pública sobre o tema e cobrança pode começar em 2025

  • Por Kellen Severo
  • 17/10/2022 13h40
EPITÁCIO PESSOA / ESTADÃO CONTEÚDO Vários bois um ao lado do outro comendo em um comedouro com uma cerca fina na frente das cabeças Cobrança de taxa agrícola para as emissões de gases de animais criados em fazendas do país pode começar em 2025

O governo da Nova Zelândia colocou em consulta pública uma proposta que prevê a criação de uma taxa agrícola para as emissões de gases de animais criados em fazendas do país. A previsão é que a medida comece a vigorar a partir de 2025. O plano está alinhado com a meta da Nova Zelândia de reduzir as emissões de metano até 2030. O governo da NZ afirma que trabalhar para reduzir as emissões é melhor do que trabalhar para compensar as emissões de gases. O prazo final da consulta é dia 18 de novembro. A iniciativa é pioneira no mundo e chama atenção do setor agropecuário aqui no Brasil, que teme a proliferação de ideias como essa que taxam a produção de alimentos em nome de uma transição para a agenda verde. Para aprofundar o tema, eu conversei com o coordenador do Observatório de Bioeconomia da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Daniel Vargas, que afirma que o que está acontecendo hoje no mundo não é apenas uma discussão sobre como iremos resolver o problema ambiental, mas sobre como nós vamos alocar os custos de transição verde. Acompanhe:

O que está acontecendo para governos como a Nova Zelândia propor este tipo de taxa? Vou dar um passo atrás, para pegar essa palavra que você citou, a precificação do carbono ou metano nos serviços agropecuários. Qual é o consenso? Ou a grande convergência no mundo? De que estamos em um processo de alteração no clima que provoca mudanças climáticas. Qual foi o grande avanço que aconteceu, sobretudo nos últimos 10 anos nas discussões internacionais? Foi a precificação de serviços ligados ao setor de energia. Então, nasceu e surgiu no mundo ao longo dos anos uma série de regimes que dão um preço para as emissões no caso do setor de energia, em particular dos combustíveis fósseis. O que está acontecendo agora? Essa mesma dinâmica de precificação chega aos produtos da agricultura e pecuária. Um dos grandes motores dessa transição é a preocupação central que o mundo tem com o metano e a ideia é a seguinte: embora o metano seja um gás que tenha menos presença na atmosfera, viva menos tempo que o CO2, ele tem potencial de aquecimento maior, e se combatermos as emissões de metano, logo nós seremos mais ágeis e capazes de combater o aquecimento global.

E o que está acontecendo, portanto, é a junção dessas duas coisas. A precificação dos produtos, no caso da agropecuária, é um esforço, tentativa de atribuir um custo das emissões que acontecem, como no caso do metano emitido pela digestão bovina, criando um desincentivo das atividades que não sejam, digamos, ‘climaticamente sustentáveis’. O que a Nova Zelândia tem argumentado? Que o produto neozelandês seria o primeiro do mundo na produção de carne ou leite, que seria metano free e isso seria suficiente para estimular a compra do produto diferenciado que vem da Nova Zelândia. Agora, aqui tem uma série de discussão que tem que ser feita com cuidado, e a primeira é: como nós vamos calcular essas emissões de metano na pecuária? E por que esse custo tem que ficar na pecuária e não em outros setores da economia? Não está claro isso ainda e o governo da Nova Zelândia está dando um passo bastante arrojado nessa direção.

Você acredita que após a consulta pública na Nova Zelândia, entrará em vigor essa taxa sobre a pecuária? O que eu tenho visto pelo mundo e tenho acompanhado isso é uma espécie de frisson pela caçada ao metano, e como não se consegue resolver as emissões de metano ligadas ao setor de energia, porque a extração de petróleo também emite metano, ou pelo menos não se quer atacar essa fonte de emissão de metano, se localiza na pecuária uma espécie de alvo mais fácil para se combater e atingir esse objetivo. Por que eu digo isso? O que tenho percebido, seja na discussão internacional ou na própria Nova Zelândia, é uma espécie de consenso questionável mas de que é importante fazer isso para resolver os problemas das emissões lá. E portanto, a minha aposta é que a Nova Zelândia vai aprovar a primeira taxa sobre os produtores baseado no número de cabeças e na área de produção para tributar as emissões de metano resultante da digesta bovina. Qual será o efeito e como essa taxa funcionará? Nós ainda não sabemos. Agora, o país tem histórico de, digamos, um experimentalismo na criação de regimes novos e diferenciados, próprios à sua realidade para combater problemas. A primeira-ministra do país tem apostado nessa ideia porque há uma espécie de grande apoio popular no país pela adoção dessas medidas, nós sabemos que todo país desenvolvido hoje tem uma espécie de ética de resistência a produtos originários da pecuária e é provável que isso tenha vigor logo mais na Nova Zelândia.

O setor agrícola, comparado com outros setores, emite mais gases? Por que o foco está na área que produz alimentos? Eu acho um contrassenso. Existe um consenso internacional que o problema das mudanças climáticas foi provocado sobretudo nas últimas décadas e séculos pela queima de combustíveis fósseis que geram acúmulo de CO2 na atmosfera e provocam o aquecimento global. Durante muito tempo, todo esse sistema de governança do clima foi montado para combater o uso desenfreado de combustíveis fósseis e a sua emissão de CO2. O que aconteceu nos últimos anos ao meu ver é que porque a gente não conseguiu por meio dessa rota de combate resolver o problema, a gente busca atalhos. O primeiro atalho é não mais combater o CO2, e sim o metano, que é mais rápido. Já que não consegue combater a emissão de metano dos combustíveis fósseis, quando a petroleira extrai o óleo do chão, eu vou focar no metano da pecuária, que me parece mais visível e tem uma espécie de convergência pública, uma ética da juventude com certo desdém para a produção da pecuária no campo. E a partir daí a gente reorienta o foco da discussão e da análise. O foco não é mais a maioria, que está na fonte de energia suja das petroleiras e do uso de fósseis, o problema está na minoria, que produz alimento, responsável pela manutenção da vida de milhões de pessoas no planeta. Eu sei que é sempre importante nessa discussão utilizarmos o máximo de rigor científico, nós não podemos e devemos aprovar uma medida que não tenha o aparato científico robusto, mas neste caso, a ciência não precisa ser levada mais a sério.

O que tem acontecido hoje na discussão é o seguinte: usamos como parâmetro de referência para calcular as emissões de metano uma régua que é igual para o petróleo e pecuária e no fundo são realidades muito diferentes. Quando uma petroleira tira o petróleo do chão e esse metano vaza, esse metano estava no fundo da terra há milhões de anos e vai para a atmosfera, em 10 anos se converte em CO2 e lá vai provocar o aquecimento global. No caso da pecuária, quando o boi faz a digestão e emite metano, ele não está criando um CO2 novo na atmosfera, mas reciclando o CO2 que já estava lá, é absorvido pela fotossíntese planta, digerido pelo boi que elimina o metano que daí a 10 anos voltará a ser a mesma molécula de CO2 que já estava na atmosfera; mas, quando olhamos para emissão de metano, o cálculo não considera essa diferença da pecuária e acabamos colocando o arroto boi como a causa da mudança climática.

Há um risco de essa medida na Nova Zelândia ser adotada por outros países? Eu acho que é um risco porque as medidas vão gerando seu impacto, criando um paradigma e depois acabam sendo copiadas por outros países com outras realidades. O ponto não é negar a ciência, é exigirmos que nós nos baseamos na ciência da maior qualidade e rigor possível e hoje a ciência do metano está em construção, está sendo aprimorada; é do nosso interesse contribuir para que essas métricas e referências sejam mais rigorosas e ajustadas para a realidade do setor, para que o produto disso também seja justo. O que está acontecendo hoje no mundo não é apenas uma discussão sobre como iremos resolver o problema ambiental, é uma discussão sobre como nós vamos alocar os custos da transição verde, e aqui há inevitavelmente uma opção política que países e setores farão sobre quem deve arcar com o problema que reside sobre todos nós. E, se o custo tiver que ficar no setor que alimenta a população, me parece no mínimo um contrassenso, é algo que deveria ser pensado com muito mais cautela e atenção no planeta.

Neste contexto, o Brasil está posicionado de qual maneira? Essa pressão vem de fora e ela só está crescendo. O grande desafio para nós é nos posicionarmos com a melhor ciência e o melhor regime de governança para criarmos os padrões de referência para nossa análise para o cálculo das nossas emissões para que isso nos permita mostrar ao mundo aquilo que temos de bom, a nossa capacidade de sequestrar carbono, de implementar sistemas de produção que conciliam saúde animal e que sequestram os gases do efeito estufa da atmosfera por meio de boas práticas, que já estão sendo usadas pelo país. O que nós não podemos fazer é ficar parado, esperando os referenciais que vêm de fora. A solução está nas nossas mãos, que é de criar o nosso regime, os nossos parâmetros e métricas que vão nos permitir organizar essa transição ajustada à nossa realidade para que mostre ao mundo os nossos referenciais de como participamos dessa discussão de forma produtiva, mas sempre com sustentabilidade.

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.

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