Até o pé direito tomou partido 

Quando até a sorte tem opinião, qualquer símbolo é indireta na ceia de Natal

  • Por Larissa Fonseca
  • 22/12/2025 20h52
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Divulgação/Havaianas A atriz Fernanda Torres é a garota-propaganda de comercial da Havaianas que causou polêmica por suposto conteúdo político A atriz Fernanda Torres é a garota-propaganda de comercial da Havaianas que causou polêmica por suposto conteúdo político

A polêmica envolvendo a Havaianas tomou a internet com vídeos de boicote, sandálias jogadas no lixo e substituições imediatas pela concorrência. A pergunta que fica é simples: por que um objeto tão banal conseguiu mobilizar tanta raiva? 

Durante décadas, a Havaianas ocupou um lugar raro no imaginário brasileiro. Uma marca que atravessou ideologias, classes sociais e amigo secreto na ceia de Natal. Presente nos pés do casamento ao Réveillon, representava algo novo com intuito de trazer sorte ao pular as sete ondinhas com o pé direito. 

Ao acionar esse código com uma campanha marcada por Fernanda Torres — e seu posicionamento político — cores de pano de fundo e até o trocadilho “não começar o ano com o pé direito” saiu do território da inclusão silenciosa e entrou no campo da identidade. E identidade, em tempos polarizados, não é só aproximação. É também exclusão. Pode reforçar quem já está dentro, mas inevitavelmente afasta quem passa a se sentir fora do convite. 

A polarização sempre esteve dentro das famílias. Muito antes de eleições, redes sociais ou campanhas publicitárias. Ela aparece no arroz com passas que divide gerações, na discussão sobre levar ou não pets para a ceia, no horário “certo” para a ceia de Natal. O que muda não é o conflito, são os símbolos. Famílias raramente brigam pelo tema em si. Brigam pelo que ele representa, ganhar a discussão mesmo que isso custe a paz. 

Estudos da American Psychological Association indicam que, quando já existem tensões latentes, pequenos detalhes viram gatilhos emocionais. O cérebro prefere conflitos simbólicos porque eles são mais fáceis de sustentar do que conversas profundas. É mais simples brigar pelo objeto do que falar da mágoa. É mais fácil atacar o símbolo do que nomear o ressentimento. 

Isso ajuda a entender por que jogar uma sandália fora vira um ato performático. Não é sobre o produto. É sobre coerência interna. Quando algo passa a representar o grupo oposto, eliminá-lo reduz o desconforto psicológico imediato. O gesto dá alívio. Mas só por alguns minutos. O conflito real continua intacto. O cérebro gosta dessa falsa sensação de controle. Resolve rápido o que não resolve de verdade. 

No comportamento do consumidor, estudos da Harvard Business School mostram que marcas que se posicionam em contextos polarizados tendem a gerar picos rápidos de engajamento, mas perdem base ao longo do tempo. O consumo deixa de ser funcional e vira identitário. Comprar ou não comprar passa a ser uma declaração de quem eu sou. E esse mesmo mecanismo aparece dentro das famílias. Pequenas escolhas viram posicionamentos. Um presente vira recado. Uma marca vira ataque. Um gesto vira indireta. 

Outro dado relevante vem de pesquisas publicadas no Journal of Family Psychology. Conflitos indiretos, feitos por meio de ironias, símbolos ou brincadeiras, duram mais emocionalmente do que conflitos diretos. A indireta não se encerra. Ela fica. Martela. É relembrada por meses. “Você lembra o que ele fez naquele Natal?” O não dito costuma ser mais corrosivo do que a discussão aberta. 

É exatamente isso que estamos vendo agora. A política virou um filtro cognitivo permanente. Expressões comuns deixam de ser neutras. “Pé direito” vira provocação. Uma sandália vira afronta. Um presente vira armadilha emocional. A intenção original se perde. O que importa é a leitura. Estudos em cognição social mostram que, quando identidades estão ativadas, a tolerância à ambiguidade cai drasticamente. Tudo precisa ser classificado. Amigo ou inimigo. Concorda ou ataca. Até o chinelo. 

Talvez por isso o Natal pareça mais tenso a cada ano, e cada vez mais cedo. O amigo secreto vira um jogo silencioso de sinais. Dou algo neutro ou estou fugindo? Dou algo simbólico ou estou atacando? Todo mundo sorri, mas ninguém relaxa. A ceia vira um campo minado emocional. Quem falou demais? Quem falou de menos? Quem postou o quê? 

O mais curioso é que nada disso é novo. Sempre fizemos isso. Só mudamos os códigos. Antes era o arroz com passas. Depois, o horário da ceia. Agora, a marca da sandália. A polarização não nasceu agora. Ela só ganhou novos objetos e mais palco. E talvez por isso essa história tenha viralizado tanto. Porque ela escancara algo desconfortável. Estamos usando coisas para dizer o que não conseguimos colocar em palavras? 

Fica então a provocação final. Estamos mesmo brigando por política ou apenas usando a política como atalho para conflitos antigos? Vale transformar a ceia em um teste de lealdade por causa de símbolos que mudam todo ano? 

Porque sandália se troca. Arroz sem passas se faz. Mas relações desgastadas por pequenas guerras simbólicas atravessam muitos Natais e, às vezes, rompem famílias por anos. O que começou como uma indireta vira silêncio prolongado. O que era brincadeira vira mágoa herdada. Se você não escolher um lado, está contra mim. 

Vale mesmo transformar a mesa da ceia em um campo minado por símbolos que mudam todo ano? Quem ganha quando a família perde o espaço de conversa? O que estamos tentando provar ao defender objetos com mais convicção do que vínculos?  Esse custo, diferente de qualquer boicote, ninguém consegue jogar fora.

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.

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