Javier Milei desponta nas prévias argentinas com promessas muito difíceis de serem cumpridas

Candidato se apoia em discurso libertário e promete enxugar o Estado a ponto de desrespeitar a Constituição argentina e os compromissos do país com a ONU

  • Por Marcelo Favalli
  • 16/08/2023 20h01 - Atualizado em 16/08/2023 20h05
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LUIS ROBAYO / AFP javier milei Javier Milei, candidato argentino admiradora de Jair Bolsonaro que tem conquistado os argentinos para as eleições presidenciais

Criada em 2009, e executada pela primeira vez em 2011, as PASO – Primárias Abertas Simultâneas Obrigatórias – são a primeira etapa do processo eleitoral para escolha do presidente na Argentina. Importante explicar logo de cara: é um mecanismo relativamente da Democracia e uma excentricidade argentina. Não existe em nenhum outro país de economia relevante. Javier Milei, que representa uma força política caracterizada pelo amplo descontentamento dos partidos tradicionais, teve um resultado acima do esperado. Embora ele viesse crescendo nas pesquisas de opinião, os mais de 30% dos votos conquistados nas primárias o coloca, além de favorito à vitória, como um fenômeno. Isto porque – sozinho – Milei teve mais aceitação que as demais legendas tradicionais, que competiam com mais de um candidato na chapa. Milei lidera o movimento “Liberdade Avança” e apresentou 60 propostas de governo. A maioria, disruptivas. O discurso soa como música a uma população insatisfeita com o atual e antigo governo, que fizeram o país superar os 100% de inflação em 12 meses e com uma das maiores taxas de juros do mundo. Tal realidade favorece à ampliação do abismo social. Os ricos ficam mais ricos e os pobres, mais pobres.

A circunstância têm muito a ver com a dolarização informação. Como a moeda argentina perdeu absurdamente o valor de face, a população passou a usar o dólar americano como base para transações comerciais, especialmente as que envolvem maior preço, como negociações de automóveis e imóveis. Na hiperinflação, fica muito difícil planejar a compra de um carro, maquinário para indústria ou uma casa nova pelo simples fato que é quase impossível prever o valor das prestações a longo prazo. Se o valor for convertido para uma moeda sólida – daí a dolarização – o cálculo se torna mais sensato. Mas a moeda corrente na Argentina é o peso. Quem optar pela dolarização informal, tem de entrar para um mercado paralelo de compra de moeda estrangeira, o que torna a cédula muito mais cara. O candidato que se intitula “anarcocapitalista” não quer ir contra a saída encontrada pela população. Uma das propostas é tornar o dólar o dinheiro oficial do país. Longe de ser uma ideia inédita. Só na América Latina, El Salvador e Equador o fizeram. A própria Argentina tentou algo parecido em 1991, com o então ministro da Economia Domingo Cavallo, que na época determinou – inclusive com artigo na Constituição – que 1 peso valeria 1 dólar. A resultado veio com o tempo. Nem a Argentina saiu da crise, tampouco El Salvador e Equador evoluíram para exemplos de austeridade. A vantagem da dolarização é solucionar uma situação crônica no estalar de dedos. Os preços se estabilizam, a inflação cai a níveis mínimos – em comparação com os atuais – e as taxas de juros se tornam módicas, também em paralelo ao determinado pelo Banco Central.

Só que não existe mágica fora da ficção. Dolarizar uma economia em frangalhos é a dose de morfina para um paciente com múltiplas fraturas. O analgésico tira as dores e traz bem-estar… Mas só até o efeito do medicamento passar. O doente só vai estar curado, quando a origem da doença for combatida. Tudo que estiver no meio do caminho serão medidas paliativas. E tem mais: substituir o peso pelo dólar requer uma quantidade que a Argentina jamais teve da moeda americana, para colocar cédulas suficientes em circulação para abastecer uma população de quase 46 milhões de habitantes. Hoje, o país sequer consegue quantidade mínima de dólares para honrar parcelas de empréstimos com credores internacionais. Mas nenhum destes impedimentos reais freia os pronunciamentos de Milei. O candidato vai além: quer eliminar o Banco Central. Faz sentido, se o dólar se tornar moeda corrente oficial. Afinal, não haveria necessidade de uma organização que imprime dinheiro que deixou de existir. Por outro lado, sem moeda própria o país abre mão da política monetária. Ou seja, a Casa Rosada seria obrigado a seguir a inflação e os juros ditados pelo Federal Reserve, o Banco Central dos Estados Unidos.

Javier Milei defende um enxugamento máximo do Estado. Fala em redução de ministérios e revisão do quadro do funcionalismo. Promessas coerentes para quem quer fala em recolocar a economia da Argentina nos trilhos. Aí está parte dos problemas estruturais do país: o excesso de gastos públicos. A máquina estatal inchou. Tornou-se cara e ineficiente. Entretanto, a solução não é tão simples quanto aquela que aprece no programa de governo do candidato. Exonerar servidores gera custos de indenização. Isso, sem contar a resistência dos sindicatos que, na Argentina, são muito fortes. Embora as propostas de arrumar a economia argentina – ou, pelo menos, reduzir a inflação galopante – tenha angariado votos, o que tornou Milei internacionalmente famoso foram promessas de privatizar tudo, incluindo os serviços de Saúde e Educação. Para tal, seria necessário mudar a Constituição. O código de Leis do país – a exemplo do resto do mundo – prevê que o Estado proveja os colchões sociais à população, tendo estas duas pastas na lista de prioridade. E mais: garantir educação e assistência médica consta na Declaração Universal dos Direitos Humanos, publicada em 1948 pela ONU, a qual a Argentina é signatária.

Encurralado em uma coletiva de imprensa, Javier Milei respondeu “depende” quando perguntado se autorizaria a venda de crianças pelos pais. Tal medida poderia ser enquadrada como tráfico humano, e vai à contramão – de novo – da Constituição e da carta das Nações Unidas que protege os vulneráveis. Por outro lado, o libertário simpatiza com a ideia da venda de órgãos, o que também não encontra respaldo legal no país; sem mencionar os conflitos éticos da Medicina. “Este discurso libertário vem de uma escola francesa de pensamento econômico que ganhou adeptos na Argentina. Este nível de liberdade de mercado defendido por esta linha, se vê mais comumente nas páginas dos livros e nas lousas das salas de aula. É mais teoria do que prática”, resume o economista Luiz Alberto Machado, do think tank Espaço Democrático.

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.

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