Manifestações contam com o apoio inesperado de Sherlock Holmes
História que envolve investigador inglês serve de inspiração a todos que se sentem inconformados e indignados com os recentes acontecimentos no Brasil
As manifestações que se espalharam pelas portas dos quarteis de todo o país ganharam fôlego surpreendente. Os manifestantes receberam ajuda de ninguém mais, ninguém menos que o lendário investigador inglês Sherlock Holmes. O que essa famosa personagem, das imortais obras de Sir Arthur Conan Doyle, tem a ver com um dos maiores movimentos populares da nossa história? A Netflix lançou recentemente o filme “Enola Holmes 2”, irmã de Sherlock. Não é uma obra de Conan Doyle, já que em seus livros ele jamais citou que seu investigador possuísse uma irmã. Quem criou Enola foi a escritora Nancy Springer. Sua história serviu de inspiração para que Harry Bradbeer produzisse o longa-metragem.
Como todos podem imaginar, as cenas contêm assassinatos, investigações, suspense. A protagonista conta com a ajuda do irmão para desvendar os mistérios da trama. A produção cinematográfica mistura ficção com realidade. O pano de fundo do filme se baseou em histórias reais. Esse é o fato que pode ser associado às manifestações que vivenciamos nas últimas semanas. Em 1888 a fábrica inglesa de fósforos Bryant & May tratava as cerca de 1.400 empregadas com rigor desumano. Obrigadas a fazer as refeições no próprio local onde trabalhavam, sem que soubessem, muitas delas eram ali contaminadas. Qualquer deslize, por mais insignificante que fosse, recebia penas severas, como, por exemplo, suspensão e desconto de boa parte do salário. Havia situações em que a funcionária não conseguia receber nenhuma remuneração devido às deduções.
Por economia de custos, a fabricante de fósforos havia substituído o produto de cor vermelha pela branca, que continha substância altamente tóxica. Por esse motivo, algumas de suas funcionárias passaram a apresentar uma doença conhecida como “Mandíbula fóssil”. Ao terem contato com a substância, contraiam infecções graves na boca, levando 20% dos casos a óbito. A empresa mentia. Dizia que a causa das enfermidades era o tifo. Com exceção da história do tifo, as outras informações relatadas no filme são reais. Uma das empregadas, Sarah Chapman, resolveu se rebelar contra aquelas arbitrariedades. Ela revelou às colegas de trabalho que o fósforo branco e a falta de proteção é que provocavam a doença. Corajosa, acabou por liderar a primeira greve de mulheres na Inglaterra. Incentivou todas as operárias que deixassem de desempenhar suas funções enquanto não tivessem ambiente de trabalho seguro.
No início ficaram com receio de represálias, pois dependiam da remuneração para sobreviver, mas, em seguida, venceram a hesitação e resolveram aderir. Diante dos prejuízos sofridos devido à paralisação, a empresa cedeu. Conseguiram que os empregadores atendessem às suas reivindicações. Pouco tempo depois, em 1901, os fósforos brancos deixaram de ser produzidos naquela empresa. Em 1908, esse produto prejudicial à saúde foi banido de todas as fábricas da Inglaterra. Para dar ainda mais realidade à película, Bradbeer mandou reproduzir, em local próximo onde estava instalada a empresa, um cenário com as mesmas características originais da fábrica. Sarah continuou com sua luta em prol de melhores condições de trabalho. Ocupou importante cargo no “Women Match Makers”, o primeiro sindicato a atuar na defesa das mulheres. Abraçou a causa feminina e da igualdade de gênero por toda a vida. Ao falecer, com 83 anos de idade, deixou importante legado para a proteção no trabalho da mulher.
No cenário brasileiro, fazer greve ou participar de movimentos populares hoje é simples, pois são inciativas garantidas pelas leis. Naqueles idos tempos, entretanto, eram ousadias punidas até com a morte. As manifestações atuais são orgânicas e parecem não ter lideranças. Cada um se expressa de acordo com as suas convicções. Elas ocorrem na estrita obediência das regras constitucionais. Não pregam a desordem, nem a afronta às instituições. Assim sendo, o filme protagonizado por Sherlock Holmes e sua irmã Enola, pode ser visto como paradigma para quem se sente meio perdido em sua trincheira, imaginando, às vezes, que seus esforços sejam em vão. Além de ser uma boa história ficcional, traz também a narrativa verdadeira que serve de inspiração a todos que se sentem inconformados e indignados com os acontecimentos que os envolvem. Ora, se uma mulher sozinha, vivendo na época onde somente os homens determinavam como as pessoas deviam se comportar, com empresas tratando os empregados como se fossem escravos, conseguiu romper barreiras aparentemente intransponíveis, por que essa causa que consideram justa, que se submete às determinações da Carta Magna, e conta com a participação de considerável parte da sociedade, não pode ser vitoriosa? Siga pelo Instagram: @polito
*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.
Comentários
Conteúdo para assinantes. Assine JP Premium.