Você fala ‘coisa’ para qualquer coisa? Que coisa!
As palavras-ônibus são utilizadas quando uma pessoa não consegue definir bem um pensamento com a palavra adequada, mas devem aparecer em circunstâncias excepcionais do processo comunicacional
Chico Buarque fez uma das letras mais instigantes e criativas do repertório musical brasileiro, “Meu caro amigo”: “Aqui na terra, tão jogando futebol/ Tem muito samba, muito choro e rock’n’roll/ Uns dias chove, noutros dias bate sol/ Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta”. Genial! E esse refrão permaneceu na cabeça de todas as gerações que se seguiram. Ainda hoje, quando alguém enfrenta dificuldades na vida costuma cantarolar: “a coisa aqui tá preta”.
Outro que imortalizou mais uma pérola da música popular brasileira foi Caetano Veloso com a canção “Sampa”: “Alguma coisa acontece no meu coração …”. E assim, se procurarmos bem, vamos encontrar uma infinidade de músicas, poesias e textos que usam a palavra “coisa” com propriedade magistral. Podemos deduzir, portanto, que esse é um termo bastante útil em nossa língua. Sim, a partir desses exemplos, não há como contestar a sua relevância. “Coisa”, “troço”, “negócio”, “legal”, “bacana” são consideradas palavras-ônibus. São termos que carregam incontáveis significados, com as mais diferentes ideias, como se fossem mesmo um ônibus levando quem se dispusesse a subir nele.
Normalmente, quando uma pessoa não consegue definir bem um pensamento com a palavra adequada, recorre a esse recurso dizendo, por exemplo: “temos de preparar as coisas para a mudança”, para se referir a objetos, materiais, mantimentos, etc. Da mesma forma, quando dizem: “temos de desenrolar esse negócio”, para se referir a gargalos produtivos, queda nas vendas, problemas familiares, etc.
Na comunicação informal, nos contatos do dia a dia, é um recurso que pode até dar mais fluência à comunicação, pois, dentro do contexto, todos conseguem compreender o seu significado. Nas situações mais formais, em que se exige linguagem educada, todavia, o uso excessivo de palavras-ônibus pode passar a ideia de pobreza de vocabulário e enfraquecer o impacto da mensagem que está sendo transmitida. Sem falar ainda no risco de criar um ruído desnecessário pela sua repetição constante. Não que não possam ser usadas. Recomendo aos meus alunos que, se em determinado momento não conseguirem vestir as ideias com o vocabulário exato, que se valham de termos analógicos ou afins. São aqueles que, embora não sendo os mais perfeitos para identificar o pensamento, darão o mesmo sentido, e dentro do contexto permitirão o entendimento da mensagem.
Explico que a palavra perfeita, correta, exata é uma só. Se, em certas ocasiões, a pessoa tiver dificuldade para se expressar, e insistir em encontrar aquele vocábulo específico, dará voltas intermináveis com o risco de truncar o raciocínio e comprometer a concentração dos ouvintes. E se, mesmo assim, nem o termo analógico surgir, que se apele para uma palavra-ônibus. Ainda que enfraqueça a qualidade da comunicação, ajudará na composição da mensagem.
Essas devem ser circunstâncias excepcionais no processo comunicacional. Se alguém, por falta de vocabulário mais amplo, recorre constantemente às palavras-ônibus, poderá prejudicar o resultado de suas exposições. Portanto, se você costuma usar com frequência esses termos genéricos, que possuem mil e uma utilidades para expressar o pensamento, comece a substitui-los por palavras mais apropriadas. Tenha certeza de que irá melhorar a qualidade da sua comunicação. Não espere, porém, para fazer essas substituições apenas quando tiver de falar ou escrever nas ocasiões mais formais, aproveite as conversas do cotidiano para aprimorar o seu vocabulário. Agindo assim, fará com que os vocábulos mais apropriados participem naturalmente do seu discurso.
Reserve as palavras-ônibus para situações emergenciais. Ou para os momentos de grande criatividade poética, como os excelentes compositores e escritores de todos os tempos. Eles fizeram e fazem história a partir de termos e expressões que, de propósito, com sua amplitude, interpretam o sentimento daqueles que ouvem suas músicas ou leem seus textos. Assim a coisa até que funciona. Siga pelo Instagram: @polito
*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.
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