Como vencer o vírus autoritário
Um déspota, ou os seus confessos admiradores, guardam características que não são confundíveis para aqueles que estudaram um pouquinho
Eu e minha família acabamos de sair de uma gripe sensacional ‒ se é que tal adjetivo pode ser empregado nessa situação. Duas semanas de tosses, gargantas inflamadas, febres e demais itens desse pacote viral que gosta do outono tal como eu. Meu filho mais novo, de 4 anos, ficou especialmente ruim. Quatro injeções em quatro dias de febre foi o saldo geral até ele recobrar sua saúde volumosa e presença expansiva na casa. Como bom pai que tento ser, se torna muito perceptível quando meu pequeno começa adoecer; dono de um caráter explosivo e de uma constância na bagunça, basta que ele fique amuado para notarmos que não está bem. Batata!, numa quarta-feira ele ficou o dia todo querendo dormir, durante todo o dia assistiu a filmes e, quando questionado sobre ir ao parquinho, negou-se com veemência. Eu e sua mãe sabíamos que viriam longas noites acordados e algumas idas à pediatra.
Mas uma característica interessante que meu filho traz é a sua perspicaz tentativa de afastar a possibilidade de medicação, basta que ele veja um jaleco branco ‒ não importando se da farmacêutica ou da médica ‒ para que se aprume em um personagem, tentando convencer a mim e minha esposa de que, miraculosamente, o vírus que o assolava até aquele instante decidiu ir embora sem prévio aviso. Ele finge com garra e astúcia a sua melhora na tentativa de que a medicação, seja via oral ou injetável, não se conclua. Não obstante a sua tentativa, como pai sei notar outras características de sua postura a fim de que sua melhora ‒ ainda que muito desejada ‒ não seja uma ilusão doce que nos permita recuar em fazer o que é necessário ser feito naquele instante. Isto é, eu conheço suficientemente meu filho para saber o que é fingimento e realidade, quando ele está ou não doente. Como tal conhecimento e certeza se instala em mim, mesmo sem nenhuma comprovação laboratorial? Simples, eu convivo com ele desde seu primeiro dia de vida, conheço seus jeitos e costumes; sei que, quando está bem, é efusivo em suas brincadeiras, falante e ininterruptamente alegre durante todo o dia ‒ sete dias na semana ‒, capaz de mudar um ambiente melancólico em um lugar de gáudio constante até a sua partida para o lar dos adormecidos.
A política brasileira, esta semana, guardou certos paralelos com a minha breve crônica familiar. Um déspota, ou os seus confessos admiradores, guardam características que não são confundíveis para aqueles que estudaram um pouquinho a história política do século XX e seus ditadores. É óbvia, num ditador, a sua repulsa pela liberdade de expressão; por exemplo, a tentativa constante de usar o próprio sistema jurídico e político do Estado para desviar o funcionamento democrático dele, com o intuito de ganhar proeminência, poder, controle. O governo autoritário pode, sim, tentar vestir-se de vestes democráticas, falar de forma erudita a cartilha dos defensores das democracias. Pode, até mesmo, com sua constante narrativa babujada de “democracias” e “garantias democráticas”, enganar aqueles que já estão abertos a serem enganados, tendentes a cair na tentação gostosa de suas ilusões ideológicas representadas pelo enganador. Mas a mim, observador atento desde sempre de sociedades e governos ditatoriais, a mim não me engana.
Um governante autoritário fede a grilhões, mesmo sob a unção dos democratas de redações, ainda que untado pelas instituições carcomidas que supostamente garantem o funcionamento democrático do país. Ainda assim, em algum momento, seu personagem cairá, as máscaras tombarão da face mesmo com a cola forte da desfaçatez tentando esconder a feição comum de hipocrisia. Quando isso ocorre, é fácil ver o antigo democrata fervoroso dos tempos de eleições lambendo, de cima a baixo, um ditador confesso, reconhecido no mundo inteiro como tal. Quando, num relapso de sinceridade, o autoritário dá aquela fraquejada em sua narrativa politicamente correta, constantemente o pegamos aos amassos com a vergonha antidemocrática em pessoa. É fato que não demora muito para surgirem mãos e lenços amigos para taparem as vergonhas expostas pelo tropeço fora do armário. Mas não adianta, para aqueles que optaram pela realidade, só resta constatar que o rei está nu.
Uma sociedade doentiamente iludida, rasgada em seu âmago pelo devaneio eterno do “controle bom do Estado”, “do Estado providente que, para além do meu esforço e merecimento, irá me recompensar com mil e uma noites de alegrias”, “do Estado que gestará a liberdade de opinião do povo para o bem dele”, uma sociedade que acredita em tais coisas invariavelmente elegerá um ator para suprir sua necessidade de virtude sem esforço. Quando os indivíduos escolhem ser iludidos por uma narrativa evidentemente falsa, somente um hipócrita pode bem representá-los. Nosso governo espelha a ilusão que criamos para acreditar e, assim, não é nada assustador assistir ao “democrata máximo de nossa nação” acariciando um ditador diante do mundo todo. Essa é a pornográfica realidade de nosso país: temos autoritários no poder, homens que adulam ditadores desavergonhadamente em rede nacional. E, vejam, não precisam acreditar em mim, basta irem nos camarins do poder, ousem abrir as cortinas após o espetáculo de dissimulação, olhem nossos líderes sem suas maquiagens e roteiros.
Para curar nosso país, por fim, temos que fazer o que faço com meu filho: ignoro seu teatro e ministro o remédio necessário para a sua cura. E qual a cura? Expulsar o vírus ditador que tenta se empossar do corpo do doente. Vamos lá, não é tão difícil assim, tudo começa quando escolhemos não acreditar mais nessa encenação ralé de autoritários que se importam com a democracia e a liberdade do povo. Na grande maioria das vezes, ser trouxa de autoritários é uma escolha.
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