Era uma vez um estuprador que militava contra o abuso infantil

Sempre tive a impressão pessoal de que quem tem valores arraigados, e os vive com verdadeiro afinco e convicção, raramente posta sobre isso nas redes sociais

  • Por Pedro Henrique Alves
  • 07/10/2023 08h00
Freepok Criança vítima de abuso Foram registrados mais de 56 mil casos de estupro de vulnerável em 2022, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Esta semana, um homem ‒ que não teve o nome divulgado pela polícia ‒, servidor público na Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social e Trabalho de Luziânia, Goiás, foi preso por ser suspeito máximo de estuprar duas crianças, uma de dez e outra de oito anos. A ironia macabra desse relato é que o homem usava, no momento da prisão, uma camiseta contra o abuso infantil e, costumeiramente, fazia parte de campanhas municipais contra o estupro, escrevia postagens contra o abuso sexual de crianças vulneráveis em suas redes. Pois bem, sempre tive a impressão pessoal de que quem tem valores arraigados, e os vive com verdadeiro afinco e convicção, raramente posta sobre isso nas redes sociais, a não ser que efetivamente trabalhe e dependa da divulgação desse assunto para se sustentar. Quando o assunto é moralidade pública então, tal percepção se aguça ainda mais em mim. Acredito que um moralista ‒ no sentido pejorativo do termo ‒ tende a compensar suas falhas de coerência com pregações efusivas e, por vezes, radicais daquele ideal que nem ele mesmo cumpre com a sua vivência cotidiana. A pessoa que, de fato, cultiva em seu caráter uma ou mais virtudes raramente passa dias e horas tentando convencer terceiros de suas aptidões e santidades. Na verdade, ao final, a pregação de um moralista se destina a ele mesmo, ele só usa um terceiro a fim de desviar o foco de si.

Tal percepção não é somente minha, aliás, desde os tratados morais medievais até literaturas mais recentes, como a do excelente Andrew Doyle, The New Puritans: How The Religion of Social Justice Captured the Western World, nota-se que a pregação fideísta da moralidade e a cobrança comunal da prática de virtudes sociais foi sequestrada de supetão dos religiosos fanáticos por uma turba ainda mais fanática e chata, os progressistas. Desde então, tal moralidade se tornou um mantra político vazio, sem ímpeto para realizar mudanças factuais de atitude, sem força real para uma efetivação de práticas livres pelos indivíduos; o que notamos, entretanto, é que aqueles que mais pregam a tolerância tendem ser os mais intolerantes quando a prática de seu ideal é exigido pela realidade, os antirracistas, os mais racistas, os defensores dos direitos LGBTQI+, os mais homofóbicos ‒ principalmente quando se deparam com homossexuais que não se dobram à sua ideologia.

Diante dos relativistas modernos ‒ os fiéis da seita da tolerância ‒, qualquer desvio de opinião é considerado ataque, a simples discordância se torna fascismo sem mais nem menos. Esvaziou-se, assim, os sentidos de bondade, de coerência e das próprias palavras e conceitos como tal, tornando o homem uma espécie de depositário de contradições, ideologias e fanatismos pueris sustentados por militâncias intimidadoras. Assim sendo, ainda que terrível e abjeto, não é lá tão anormal da perspectiva cultural contemporânea que hoje em dia surjam estupradores trajados com camisetas alertando a sociedade a respeito da existência deles, nem que suas pregações sociais e as suas personas sociais sejam a de aguerridos defensores das crianças vítimas de pessoas como eles. O que vale é o que pregamos, não o que vivemos.

E, calma, não estou dizendo que a contradição, a hipocrisia, seja um dado-fato do progressismo esquerdista somente. Por exemplo, o que tem de pai de família conservador que arrota virtude paternal e marital no Instagram e, no fim do dia, dá em cima da empregada e da secretária, não está escrito. Conheço uns cinco ou seis pessoalmente. A hipocrisia é antes um dado humano, façamos justiça, uma herança adâmica, uma fraqueza atávica de caráter contra a qual ou lutamos e a domamos, ou ela nos sequestra e nos torna escravos perenes. Todavia, podemos dizer que foi o progressismo ‒ ou a esquerda contemporânea, como quiserem ‒ que institucionalizou a hipocrisia como virtude social. Afinal, se a realidade é relativa, se a verdade é mutável e adaptável a tudo, se nem mesmo o mais óbvio dos fatos pode se afirmar como tal, então num extremo que agora vemos a olho nu, por que não poderiam existir pedófilos que, de manhã, abusam de crianças nas escolas e, de noite, participam de fóruns contra abusos infantis em seus municípios? Que escrevem textões lacrativos contra a “cultura do estupro” no Instagram enquanto, na aba ao lado em seu smartphone, assiste um vídeo pornô com crianças? 

Quando se estabelece que o poder e a vitória política são o fim último dos indivíduos, estabelecem-se, simultaneamente, ideologias e conceitos que desvirtuam a verdade, que põem em cheque a coerência como estado de vida moral a ser alcançado por todos, e, a partir daí, qualquer coisa pode se justificar sob a mais pueril e vagabunda demanda de verniz ideológico. Homens podem ser mulheres, porque assim eles querem e se sentem, e qualquer ordem perceptiva mais simples que contradiga isso se torna preconceito inafiançável. Mas, se é assim atualmente, por que não poderiam existir estupradores antiestupros, pedófilos que militam ardorosamente contra a pedofilia? Aliás, será que estou incorrendo agora de “pedofobia”?

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