O absurdo dos cristãos
Grupo religioso acredita que um homem, que ao mesmo tempo é Deus, desceu de sua condição de supremacia, encarnou-se em um invólucro esfarelante, condenado à natural putrefação material e miséria moral para se fazer um de nós
É um ABSURDO! A afirmação dos cristãos é um absurdo estonteante: um homem, que ao mesmo tempo é Deus, desceu de sua condição de supremacia, encarnou-se em um invólucro esfarelante, condenado à natural putrefação material e miséria moral ‒ ainda que não tenha sido atingido por essa miséria ‒ para se fazer um de nós. Esse homem-Deus pregou virtudes e renúncias, ajustou as honras e valores de seus apóstolos, conduziu almas à salvação através de uma pedagogia única e completamente paradoxal: ame os seus inimigos.
A narrativa era de que os pecados dos homens maculavam o destino de felicidade que Deus ‒ a quem ele chamava de pai ‒ havia desejado para seus filhos – sim, filhos, e não “criaturas”, “projetos”. Aqui Jesus foi bizarro para a lógica dos homens que, já naqueles dias, aprendiam que a concepção de reta justiça passava pela condenação de um ou mais agentes culpados. Mas Jesus pregava que, daquela vez, o Deus-homem, homem-Deus, seria a ovelha do sacrifício; que a guilhotina da devassidão moral da humanidade cairia sobre aquele que não havia pecado sequer uma vez. O próprio Filho de Deus, aquele que desceu da glória eterna para se fazer criatura, morreria no lugar dos realmente culpados: NÓS. Eis a lógica ABSURDA, de uma justiça transcendental que coloca de ponta-cabeça tudo aquilo que nossa natureza entende como justo, deixando-nos céticos desde o início, dado que a ordem natural da mais rasa concepção de probidade judicial se encontra do avesso, sem conexão de causa-efeito. “Não é possível, não só a ideia de um homem-Deus, mas também a narrativa de que esse Deus, imensurável em todas as suas conceituações e atribuições, pudesse descer e se auto imolar por homens fracos, sujos, hipócritas”… A sequência coerente da mínima ordem perceptível condena tal visão, não à toa Nietzsche considerava o cristianismo a devassidão suprema da razão e da isonomia jurídica.
Mas consideremos por um minuto: e se esse “absurdo” for verdade. Se isso realmente aconteceu… Se aconteceu, isso muda tudo. Não temos um Deus meramente criador, indiferente, tal como um engenheiro que produz uma máquina e que, na evidência de uma falha, tenta consertar, mas, sem resultado, descarta e parte para um novo projeto. Não, esse Deus prefere descer, mostrar o caminho, chorar, comer, sorrir e morrer, para que suas “criaturas” – estranhamente também chamados por Ele de filhos e amigos – pudessem encontrar salvação. Então esse absurdo ganha outro nome: AMOR; e o amor pode justificar a quebra dessa causa-efeito. Um Deus justo não poderia deixar de cobrar os pecados conscientes de seu filho, porém, esse mesmo Deus que é justo, é também pai amoroso, é que Jesus tentava ensinar em sua parábola do Filho Pródigo. Essas duas verdades, aliás, deveriam então se conciliar de alguma forma, a justiça divina e a misericórdia amorosa de Deus, e a forma que esse Deus encontrou para isso foi ele próprio descer e ser sacrifício no lugar dos que ele ama. Tão esplêndido que, tal como o sol, nos cega ante uma observação meramente ocular. Esse amor, ao cético, só pode aparecer sob a forma de “absurdo” racionalmente inconciliável, uma “narrativa religiosa fantasiosa” como quaisquer outras mitologias.
Todavia essa percepção foi tão profunda e revolucionária que acabou fincando na alma das civilizações que a acolheram uma percepção diversa daquelas bárbaras que não conheceram o Cristo: o sacrifício, a misericórdia e o amor livremente doado a quem não deveríamos racionalmente doar é, em si mesmo, uma virtude a ser pensada, praticada e ensinada. Se Cristo o fez na Cruz, seu seguidores deveriam emular na realidade mais banal de seu cotidiano, copiar o Jesus em sua renúncia, amor e misericórdia. Aquilo que Nietzsche considerava fraqueza, os cristão chamavam de princípios, aquilo que o filósofo alemão considerou o erro do cristianismo, Jesus considerava a via da salvação. A partir do Cristo então tornou-se padrão de conduta não aceitar desvios morais como sendo normais ou bons, mas perdoava-se e acolhia-se todos os desviados como irmãos; a modernidade, por sua vez, tornou-se a realidade que aceita todos os desvios como sendo diversidade e pluralidade, mas não perdoa nada e nem ninguém. O Cristo ofereceu a culpa e o arrependimento que encontravam a justiça divina, o laicismo contemporâneo oferece a justiça moralmente duvidosa, e, para aqueles que a descumprem, costumavam doar gulags e campos de concentração. Ainda que não totalmente compreensível, quando os homens praticaram a justiça paradoxal que a cruz do Cristo deixou, parecia que a humanidade ainda guardava uma sanidade e benevolência digna de sua condição; quando os homens procuraram destronar Deus da sociedade para colocarem seus cérebros humanistas e ultracientíficos no lugar, o homem se tornou mais uma besta em uma savana de egocêntricos.
Pois bem, se for mentira, militemos pela dita vitória da razão sobre as superstições religiosas, Nietzsche estaria coberto de razão, o cristianismo seria um câncer que causa fraqueza racional e ética. Todavia, se for verdade, se o filho de Deus se encarnou para morrer por nossas faltas, então nos convertamos, pois este sem dúvida seria o ápice de tudo que é mais sublime e maravilhoso. A cruz então seria o eixo da existência, a viga que dá sentido ao dia e à noite de cada homem, e não meramente o absurdo de uma seita antiga.
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