Editorial: Ainda o fatiamento, o risco de impunidade e as “savonarolices”

  • Por Reinaldo Azevedo/Jovem Pan
  • 24/09/2015 19h17
Fellipe Sampaio/SCO/STF Detalhe de arco-íris em volta da estátua da Justiça em frente ao Supremo Tribunal Federal

Acho compreensível que muita gente não tenha entendido o rolo do fatiamento do “petrolão”, que passará a ter vários relatores no Supremo, e, por consequência, o mesmo acontecerá na primeira instância — o que significa que o juiz Sérgio Moro tende a perder a jurisdição de alguns casos. É o fim da Operação Lava Jato? Não.

Se fosse, ninguém mais seria condenado, todos os presos já estariam soltos, haveria absolvições em massa etc. Há, no entanto, o risco de pessoas acusadas pelos mesmos crimes, com igual grau de comprometimento, terem sentenças distintas, já que julgadas por tribunais diferentes? Há. Isso é bom? Não! Ainda que sejam cortes distintas, o Estado acusador é o mesmo.

Por que isso aconteceu, ouvintes? Vamos lá. Há acusados que são investigados e julgados na primeira instância, e há aqueles com foro especial por prerrogativa de função. Senadores, deputados e presidente da República, por exemplo, são processados pelo Supremo. Voltemos ao mensalão. Por que o caso todo ficou no STF, e nada menos de 38 pessoas foram julgadas pelo tribunal?

Ora, 35 delas não tinham direito a foro especial e poderiam ter sido julgadas pela Justiça comum. Sabem quem arrastou aquelas 35 para o STF? Apenas três deputados que também eram investigados: João Paulo Cunha (PT), Valdemar Costa Neto (PR) e Pedro Henry (PP).

Márcio Thomaz Bastos, então advogado de José Roberto Salgado, diretor do Banco Rural, tentou desmembrar o processo. O Supremo negou. E por que negou? Porque a denúncia do Ministério Público demostrou que todos eles estavam unidos numa teia; que os crimes, mesmo quando tinham lateralidades específicas, obedeciam a uma centralidade.

Desta feita, no petrolão, como observou o ministro Teori Zavascki, foi a Procuradoria-Geral da República quem escolheu o caminho do fatiamento, encaminhando pedidos de abertura de inquérito ora para o próprio Teori, ora para Sérgio Moro. QUEM FAZ ISSO ELIMINA, DE SAÍDA, A IDEIA DE QUE OS FATOS ESTÃO RELACIONADOS E SÃO CONEXOS. É uma obviedade.

Ao contestar o fatiamento ao qual ele mesmo aderiu, Rodrigo Janot afirma agora: “Não estamos investigando empresas nem delações, mas uma enorme organização criminosa que se espraiou para braços do setor público”.

Epa! Essa tese, modéstia à parte, sempre foi a deste blog. E justamente “porque não estamos investigando empresas”, a tese do cartel é falsa como moeda de R$ 3. O que se tem, aí sim, é uma organização criminosa que açambarca também as empreiteiras — que não tinham como estar na chefia porque não são elas as portadoras das leis. Mas também não quer dizer que sejam vítimas.

Ora, se estávamos falando, como sempre defendi, de uma organização criminosa, por que a Procuradoria-Geral da República, constatada a existência de acusados com fórum especial, não encaminhou, desde sempre, tudo ao Supremo? Se os casos estavam umbilicalmente ligados, e estavam, por que Sérgio Moro proibia os depoentes de citar nomes de políticos com foro especial? A resposta, todo mundo conhece: porque isso o obrigaria a mandar o caso para o Supremo. E ele queria manter tudo com ele, em Curitiba.

Quantos, nesse meio do caminho, erraram de boa-fé, de má-fé, por ignorância ou por “savonarolice”, bem, aí é preciso investigar. O que é “savonarolice”? É um termo que criei e que remete ao padre dominicano italiano Jerônimo Savonarola, do século 15, que chegou a dar as cartas em Florença durante um certo tempo, voltando-se contra a própria autoridade papal.

O fatiamento traz, sim, riscos à equanimidade da Justiça? Traz! Mas não foi por falta de advertência. Só agora doutor Janot vem falar que “não se trata de investigar empresas, mas uma enorme organização criminosa”? Ora… E como compatibilizar isso com a tese do cartel?

Com a devida vênia, eu, infelizmente, estava certo, sim. E o que parecia, antes, excesso de rigor pode resultar, a depender do caso em absolvições injustas e impunidade.

A imprensa, na média, terá boa parte da culpa. Preferiu ouvir corporações e Savonarolas a ouvir as leis. Pior: erros assim já aconteceram antes. Os criminosos sempre torcem por isso.

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