Editorial: Em 31 de março de 1964, chamaram golpe de revolução; em 31 de março de 2016, chamaram revolução de golpe
Trinta e dois anos depois de a Praça da Sé sediar o primeiro grande comício das Diretas-já, o local voltou a ser ocupado, nesta quinta, por manifestantes — 40 mil segundo o Datafolha.
Há mais de três décadas, democratas e esquerdistas dos mais variados matizes cobravam o restabelecimento das eleições diretas para presidente da República — a primeira safra de governadores escolhidos pelo povo havia ocorrido dois anos antes, em 1982.
Era 25 de janeiro, aniversário de São Paulo. Lembro-me como se fosse hoje. Os petistas estavam na linha de frente do protesto e, ora vejam, naquele tempo, só seus próprios integrantes escapavam das vaias da militância. Até Ulysses Guimarães foi alvo de ofensas. Afinal, o partido não queria conversa com burguês porque “dos trabalhadores”. Estupidez, sim! Mas havia certa dignidade naquele radicalismo tosco.
Como não observar? Quase metade desses 32 anos — estamos no 14º —, o país ficou sob os cuidados do PT. Se, em muitos aspectos, continuamos a ser a terra de desigualdades e iniquidades, muito se deve, então, à clarividência dos companheiros, não é mesmo? Nesses 32 anos, ou eles estavam no comando ou estavam sabotando soluções justas, como a reforma da Previdência, que nunca fizeram nem deixaram que fizessem.
Ah, era bom gritar contra o autoritarismo militar, a inflação, a corrupção. Com todo o horror que uma ditadura sempre traz consigo, é claro que o regime dos generais era um convento se comparado aos métodos petistas de gestão. E não! Nem assim a ditadura era desculpável.
Trinta e dois anos depois, os supostos 40 mil da Praça da Sé, reunidos em pleno dia útil, não estavam reivindicando mais democracia, não estavam defendendo o estado de direito, não estavam lutando por mais justiça. Muito pelo contrário.
Os esbirros do partido tomaram a praça para, na prática, defender o que Wagner Moura chamou “um projeto de poder amparado por um esquema de corrupção”. Bem, já não é mais projeto, mas obra. Não é apenas “amparado” pelo esquema; ele é o próprio esquema.
Já virou um clichê citar o Marx (relendo Hegel), segundo o qual os fatos históricos acontecem duas vezes: a primeira como tragédia; a segunda como farsa. Raramente vi uma situação em que tal frase se encaixasse com tamanha perfeição: em 1984, a tragédia da derrota das diretas; em 2016 a farsa do falso golpe.
Em 1984, nós pedíamos, além das diretas, uma “Constituinte livre e soberana”, que foi eleita em 1986. A Constituição em vigor, aprovada em 1988, é fruto desse processo. E é contra a Carta Magna que se mobilizaram nesta quinta os petistas e outros esquerdistas.
A manifestação de 1984 cobrava mais liberdade; a de 2016 quer o regime das milícias partidárias; a manifestação de 1984 reivindicava um regime pautado pelas leis; a de 2016 pede que a lei seja ignorada em benefício de um partido; a manifestação de 1984 queria alinhar o país com as vanguardas democráticas do mundo; a de 2016 tem como parâmetro a dita “revolução bolivariana”; a manifestação de 1984 considerava a democracia um valor universal; a de 2016 vê em tal regime apenas uma valor instrumental.
Dilma tem razão quando diz que, em 31 de março de 1964, chamaram um “golpe” de “revolução”. No dia 31 de março de 2016, ela e seus aliados fizeram o contrário: chamaram a revolução — a da lei — de golpe.
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