Editorial: nada no Alcorão proíbe que se represente a imagem do Profeta; ou: queriam a prova de que a Turquia não é uma democracia?

  • Por Reinaldo Azevedo/Jovem Pan
  • 14/01/2015 18h03
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EFE Charlie Hebdo escolhe para capa uma caricatura de Maomé segurando cartaz escrito "Je suis Charlie"
Nada no Alcorão proíbe que se faça um desenho da imagem do profeta Maomé. Isso é fruto de interpretação. O livro sagrado dos muçulmanos se refere a Jesus como “o Messias”, “a palavra de Deus”, “a palavra da verdade”, “um espírito de Deus”, “o mensageiro de Deus”, “o servo de Deus”, “o profeta de Deus”, “ilustre neste mundo e no próximo”. Mais: aceita como divinamente revelados os ensinamentos de Moisés e os valida para Maomé. Já disse aqui e repito: no Alcorão ou na Bíblia, encontram-se palavras de guerra e palavras de paz. A questão é saber quais triunfam e por quê.
O Alcorão que compreende, em vez de matar, pode tornar o mundo melhor — e também isso vale para o Livro Sagrado dos cristãos. Mas indago: em que país do mundo, como força preponderante, se aplicam os ensinamentos lhanos da lei maometana? Escrevi em meu blog, já faz tempo, que não considero a Turquia uma democracia. O país é habitualmente citado como exemplo de que a fé islâmica pode conviver com um regime de liberdades públicas.
Apanhei bastante. Fui acusado de preconceituoso. Pois é… A Justiça turca proibiu o acesso a sites que reproduzam a charge publicada pelo “Charlie Hebdo”. No país, só o jornal “Cumhuriyet”, de Istambul, publicou alguns dos desenhos do jornal francês, mas não o de Maomé. Mesmo assim, segundo a publicação, policiais interceptaram os caminhões que saíam da gráfica para verificar se a edição estampava a imagem proibida. Faço perguntas óbvias: em que democracia do mundo isso acontece? Que democracia do mundo interdita o acesso a sites? Que democracia do mundo aplica a censura prévia de arma na mão?
E, neste ponto, acuso a covardia dos líderes do Ocidente. Sim, muitos deles — não Barack Obama, que nem isto fez — compareceram ao protesto na França, que reuniu quase quatro milhões de pessoas. Em seguida, no entanto, teve início a ladainha de desculpas e escusas com o mundo islâmico. Angela Merkel, chanceler alemã, decidiu participar de um ato contra a suposta islamofobia.
Ora, todas as pessoas decentes somos contra a islamofobia, a cristofobia, a judeufobia etc. Mas pergunto: os líderes ocidentais estão fazendo a devida cobrança aos representantes do islamismo moderado — ou, se quiserem, daquele islamismo do Livro Sagrado? Mas cobrar o quê? Que anunciem ao mundo palavras de paz!
O governo turco não se pronunciou oficialmente a respeito. Mas um dos vice-primeiro-ministros, Yalcin Akdogan, afirmou: “Aqueles que desprezam os valores sagrados dos muçulmanos publicando desenhos que supostamente representam o nosso profeta são claramente provocadores”. Ele anunciou isso no Twitter. São palavras de guerra, não de paz.
Cadê Barack Obama? Por que o presidente do país mais importante do que já se chamou “Mundo Livre” está em silêncio obsequioso? Nunca sou ambíguo ou oblíquo. Não estou aqui a especular sobre supostas vinculações, afetivas que fossem, de Obama com o Islã. Acho que o caso é mesmo de fraqueza moral. O mundo que temos é complicado demais para ele.
Vivemos um momento sem dúvida importante. Ou as democracias ocidentais declaram o valor universal da liberdade ou permitem que a lógica do terror e da ditadura religiosa se insinue em sua cultura. O que vai ser?
Não! Não se trata de um confronto entre dois fundamentalismos. A liberdade de expressão não é um princípio — ou, então, um fundamento — que aniquila as vozes contrárias porque seria divinamente inspirada. Ao contrário: sua virtude está na pluralidade humanamente conquistada — e com muito sofrimento.
Mas ainda que se admitisse um confronto de fundamentalistas, seria forçoso reconhecer que existe uma diferença entre o princípio que diz “sim” à diversidade de opiniões e o que diz “não”.
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