Editorial: uma carta sobre tudo que diz nada
Quatro entidades decidiram tornar pública uma “Carta à Nação”. Veja aqui. Assinam o documento a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), a CNI (Confederação Nacional da Indústria), a CNT (Confederação Nacional do Transporte) e a CNS (Confederação Nacional da Saúde). O texto faz um apelo para que os atores políticos coloquem acima de seus próprios interesses os da nação. Huuummm… Parece bom. Mas isso não é muito diferente de defender a lei da gravidade. Alguém é contra?
De saída, começo destacando o que o texto não diz. Aqui e ali, leio que o documento rechaçava, por ora, o impeachment. Não rechaça. O que vai lá escrito é outra coisa: “Mudanças, respeitando-se a Constituição, se fazem necessárias”. Ok. Também acho. O impeachment, por exemplo, respeita a Constituição. Nasce da combinação dos Artigos 85 e 86 da Carta, certo? A OAB e as demais entidades, obviamente, sabem disso.
Como linhas gerais, o texto diz coisas certas porque escandalosamente óbvias. Querem ver? “Independentemente de posições partidárias, a nação não pode parar nem ter sua população e seu setor produtivo penalizados por disputas ou por dificuldades de condução de um processo político que recoloque o país no caminho do crescimento.”
Sem dúvida. Só que ninguém ainda descobriu uma maneira de fazer isso, tirania à parte, que não seja por intermédio da política. É sempre simpático cobrar que os homens abram mão de seus apetites, não é?, em nome do bem comum. Mas me digam: o bem comum está, por exemplo, na recente medida do governo, que vai fornecer empréstimos a juros subsidiados para setores da indústria, como sabe a CNI, enquanto o governo precisa regular a própria incompetência a golpes de juros, o que derruba a… indústria? Onde está, afinal, o ponto neutro, não político, desse debate?
Num outro momento, afirma o documento das entidades, prestem atenção:
“A nação também precisa ser desburocratizada, facilitando o processo produtivo e garantindo um ambiente de negócios em que o Estado deixe de agir como um freio à expansão econômica.
É preciso que seja realizado um forte investimento em infraestrutura, em parceria com a iniciativa privada nacional e estrangeira, para retornar o processo de crescimento econômico.”
Quem pode ser contra isso? Ninguém! Parece que o trecho pede, por exemplo, uma reforma tributária, aquela sempre anunciada e jamais feita. Mas um governo fraco, que hoje vive um desespero arrecadatório, não tem como liderar um debate que vai opor interesses regionais.
Da mesma sorte, um forte investimento em infraestrutura nasceria de um novo ciclo de privatizações que essa gestão não pode fazer porque lhe falta clarividência ideológica e eixo. As tênues forças nas quais se sustenta são doentiamente estatistas e querem o contrário do que prega a Carta à Nação, a saber: “Deve-se, ainda, reduzir imediatamente o tamanho do Estado, assegurando que o mérito e o profissionalismo sejam os critérios na escolha de servidores”.
Pergunta óbvia: este governo teria a coragem política de reduzir, digamos, à metade os 25 mil cargos federais de livre nomeação de que dispõe? Acho que não. É tão dependente de seu frágil arranjo que não consegue nem mesmo cortar alguns de seus 39 ministérios — talvez a maior estrutura administrativa desde a corte persa dos eunucos.
O documento das quatro entidades sugere:
“Noutro campo, também se devem (corrigido) rever as regras de crescimento automático de gastos de modo a permitir a sustentabilidade dos investimentos em saúde e educação, e sem abdicar da necessidade de permanente inclusão de novos segmentos da sociedade brasileira no mercado de consumo.”
Confesso que não entendi se a carta quer gastar menos dinheiro nessas áreas ou mais. Pode ser uma coisa e pode ser outra. E tudo, claro!, desejando sempre uma inclusão ainda maior dos “novos segmentos da sociedade brasileira no mercado de consumo”. Não seria difícil demonstrar que vai acima só um amontoado de bons desejos genéricos, contraditórios em si.
A carta avança:
“Esperamos a sensibilidade dos políticos eleitos para a implementação de uma agenda que abra caminhos para a superação das crises e para a recuperação da confiança dos brasileiros.”
OAB, CNI, CNT e CNS sabem, desde Santo Agostinho, que existe a Cidade de Deus e a Cidade dos Homens. Se elas estiverem dispostas a debater teologia, a coisa pode render. Se é de política que estão falando, isso não quer dizer absolutamente nada.
Acho simpático, claro, que a OAB se junte com três entidades do setor produtivo para dar conselhos aos políticos e coisa e tal e para defender a lei da gravidade. Mas não é possível que seus respectivos comandos não tenham percebido, a partir de sua própria experiência, que o Executivo é que deveria liderar esse processo — aliás, o texto chega a mencioná-lo — e que isso só é possível se o governo tiver credibilidade. E é precisamente o que falta a este que está aí.
O documento vem a público no dia em que Dilma se encontra com alguns empresários para esboçar a sua fé no futuro… A carta, como se pode ler, não toca no impeachment, dirige cobranças ao próprio Poder Executivo, mas é evidente que procura jogar um pouco de água fria na fervura. Não acredito que vá funcionar.
Em 1992, o então presidente da OAB, Marcello Lavenère, a esta altura, estava encaminhando à Câmara dos Deputados, em parceria com Barbosa Lima Sobrinho, que comandava a ABI, a denúncia contra Fernando Collor. Em 2015, o governista Marcus Vinicius Furtado Coêlho, presidente do Conselho Federal da Ordem, põe a sua assinatura numa, lamento dizer, carta sobre o nada.
Obviamente, o líder político a liderar essa “Cidade de Deus” teria de estar acima das paixões partidárias. O partido da presidente lidera nesta quinta uma patuscada que denuncia uma suposta tentativa de golpe. E os agentes seriam justamente aqueles que apenas estão pedindo o cumprimento da Constituição.
Vamos fazer um combinado? A CNI, a CNT e a CNS levam a sério essa conversa de menos estado na economia e rechaçam, por exemplo, os juros subsidiados da CEF e do Banco do Brasil. E a OAB leva a sério esse negócio de cumprir a Constituição e segue os passos de Marcello Lavenère em 1992 e apresenta uma denúncia contra Dilma. O que lhes parece?
Ou, então, da próxima, encomendem uma carta ao espírito do Conselheiro Acácio.
Comentários
Conteúdo para assinantes. Assine JP Premium.