A lucidez de Paulo Brossard fará falta ao Brasil
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Morreu na manhã deste domingo, aos 90 anos, Paulo Brossard. O Brasil perde um jurista lúcido, um político desassombrado e um homem corajoso, que nunca fugiu dos embates. Ao contrário: soube dizer e fazer a coisa certa. Brossard pertence à linhagem dos tribunos, dos que entraram na vida pública em nome de princípios e ideias. No momento em que a política se acanalha e se confunde com um covil, vai-se aquele sobre quem jamais pesou sequer a sombra de uma suspeita. Os adversários podiam repudiar suas convicções, o tom às vezes épico que emprestava às suas causas, mas ninguém ousaria apontar alguma mancha moral em sua biografia. Solidarizo-me com toda a família, em especial com a minha caríssima amiga Magda Brossard Iolovitch, que herdou do pai o rigor intelectual e a paixão pelo direito.
Brossard iniciou a carreira política em 1954, como deputado estadual no Rio Grande do Sul. Em 1966, já na ditadura, elegeu-se deputado federal pelo MDB. Em 1974, chega ao Senado, tornando-se líder do partido em 1978. Nesse ano, num ato de claro desafio ao regime militar, aceita ser candidato a vice-presidente na chapa encabeçada pelo general Euler Bentes Monteiro, que disputou com o também general João Figueiredo o Colégio Eleitoral. O candidato do regime venceu por 355 votos a 226, mas estava dada a fratura do poder. A abertura “lenta, gradual e segura” teria início no ano seguinte. Em 1985, José Sarney, já presidente, o nomeia consultor-geral da República e o indica, em 1989, para o Supremo Tribunal Federal, onde ele permanece até 1994, quando se aposenta, aos 70 anos.
O senador gaúcho só aceitou disputar como vice de Euler Bentes depois que o presidente Geisel impôs o que Brossard apelidou de “Constituinte do Riacho Fundo”, referindo-se ao chamado Pacote de Abril, de 1977. O ditador apelou ao AI-5 para fechar o Congresso e impor uma reforma política que garantisse aos militares a maioria no Colégio Eleitoral: um terço dos senadores passou a ser indicado pelo presidente; aumentou-se a representação dos Estados com menos população e se estendeu o mandato presidencial de cinco para seis anos. Riacho Fundo era o nome da granja em que Geisel, de fato, morava. Com a expressão, Brossard designava a ação de um autocrata.
Em 1988, às vésperas da Constituinte, era grande a pressão no Congresso para reduzir o mandato do então presidente José Sarney de cinco (não mais seis) para quatro anos. Sarney não aceitava e chamou Brossard. Avisou que iria renunciar. O ministro da Justiça convocou uma reunião secreta com os presidentes do PMDB, Ulysses Guimarães; do PDS, Jarbas Passarinho; do PFL, Marco Maciel, e do PTB, Paiva Muniz, e expôs a situação. Se a renúncia acontecesse, o país poderia entrar numa crise de consequências imprevisíveis. Não se falou mais no encurtamento do mandato.
O encontro não teve testemunhas, mas, anos depois, Brossard se encarregou de redigir um documento a respeito do episódio, mandou uma cópia a Sarney e pediu que Maciel e Passarinho, os dois sobreviventes daquela reunião, assinassem o texto, o que acabou acontecendo. Ele se indignava com a suspeita de que a manutenção dos cinco anos de mandato para Sarney tivesse passado por uma negociata. Passou foi pelo risco de uma crise política.
Eu tinha o privilégio imerecido de tê-lo entre os meus leitores. Uma única vez ousei importuná-lo numa conversa ao telefone, que solicitei a Magda. Geralmente, ficava sabendo de suas opiniões por intermédio dela e sempre fiquei muito impressionado com a precisão e com a paciência metódica com que ele acompanhava a política nacional no detalhe. Estive pessoalmente com o jurista, pela última vez, em 2006, na entrevista que concedeu ao programa Roda Viva, do qual eu era um dos entrevistadores. A lucidez seguia impecável, qualidade que ele preservou até as vésperas da morte.
Em 2010, num desses intermináveis debates sobre a revisão da Lei da Anistia, o jurista aprovou uma análise que fiz no blog e pediu que Magda me enviasse um trecho de um artigo seu, em que se lia: “A Anistia, tal como foi concebida, é irreversível. Todos os delitos que foram anistiados, por força da lei, são apagados. É um princípio universal. Não é que se perdoe. Se apaga. É como se nunca tivessem existido. A anistia não é um ato de justiça, nem de reparação. É uma medida de caráter político, no sentido mais amplo e mais rico da palavra. A lei apaga, por considerações que não são de ordem de justiça, mas são de ordem de conveniência, de utilidade. A Anistia é para pôr fim, para esquecer. (…) anistia não é justiça, é concórdia, é esquecimento. Não condena e não absolve ninguém. Apaga. Esquece.”
A sabedoria de Brossard fará falta ao Brasil.
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