Síndrome de BurnOn: Precisamos de uma nova síndrome?
Fenômeno é evidenciado quando indivíduos estão constantemente à beira do esgotamento no trabalho, mas continuam a desempenhar suas atividades profissionais normalmente, inclusive demonstrando produtividade
A síndrome de BurnOn foi descrita em 2021 pelos pesquisadores alemães Timo Schiele e Bert te Wildt em seu livro “Burnon: Sempre à Beira do Burnout” (em tradução livre para o português). De acordo com os pesquisadores, trata-se de um fenômeno relacionado ao trabalho no qual indivíduos estão constantemente à beira do esgotamento, mas continuam a desempenhar suas atividades profissionais, inclusive demonstrando uma aparência de produtividade e sucesso. Os autores justificaram a criação de uma nova categoria para a descrição de um fenômeno clínico pela necessidade de categorizar os pacientes com maior precisão. Assim surge a Síndrome de BrunOn, como fenômeno crônico, sendo a síndrome de Burnout um fenômeno mais agudo.
É fundamental destacar que se trata de uma síndrome que não é reconhecida pela comunidade médica mundial e não há nenhuma definição oficial sobre este quadro, de acordo com as duas classificações mais utilizadas em saúde mental globalmente – CID-11 (Classificação Internacional das Doenças, 11ª Revisão, da Organização Mundial da Saúde) e DSM-5-TR (Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais, 5ª edição, texto revisado, da Associação Americana de Psiquiatria).
Inclusive não há pesquisas científicas que justifiquem a criação de um novo diagnóstico em psiquiatria, já que as atuais classificações já são suficientes para descrever os transtornos psiquiátricos que estão associados ao trabalho. A síndrome de Burnout, por exemplo, é definida na CID-11 como uma síndrome resultante de estresse crônico no ambiente de trabalho que não foi bem manejado. Ela é caracterizada por três dimensões:
– Sensação de falta de energia ou exaustão;
– Aumento da distância mental em relação ao trabalho, ou sentimentos negativos ou cínicos relacionados ao trabalho;
– Sensação de ineficácia e falta de realização.
Duas questões sobre a síndrome de Burnout devem ser pontuadas. A primeira é que, apesar de estar descrita na CID-11, ela não é considerada um transtorno psiquiátrico. A própria Organização Mundial da Saúde, em seu site oficial, esclarece que a síndrome de Burnout é um fenômeno ocupacional e não é classificado como uma condição médica. O segundo ponto é que há várias discussões e discordâncias na comunidade científica sobre a própria validade da síndrome de Burnout. Diversos especialistas argumentam que a síndrome não é diferente da depressão e, inclusive, pode ser apenas outra forma dela. Os sintomas principais da síndrome de Burnout, como exaustão emocional e desempenho reduzido, também são comuns em quadros depressivos, o que pode sugerir que a classificação atual como uma síndrome única não é justificada.
A medicina é uma ciência aplicada que necessita de classificações para os fenômenos que estuda. No campo da psiquiatria, os diagnósticos são importantes a fim de guiar os estudos científicos, permitindo estudar sobre as causas, prevalência, desfechos clínicos e métodos de tratamento. Eles servem para que haja uma linguagem comum entre os profissionais de saúde mental e também ajudam os pacientes ao fornecerem detalhes sobre seu adoecimento mental. Em psiquiatria, utiliza-se o método fenomenológico, no qual a arte do clínico reside em fazer as perguntas certas e em observar os fenômenos com precisão. Dessa maneira os diagnósticos são construídos com base no que pode ser diretamente observado pelos profissionais ou relatado pelos pacientes.
Quando subdiagnosticamos pacientes, corremos o risco de não identificar doenças que podem ser tratadas. Por outro lado, se os diagnosticamos em demasia, podemos acabar tratando problemas que eles não possuem. Uma consequência da criação desnecessária de novas síndromes, como a síndrome de BurnOn, é a falha em identificar fatores de estresse social que produzem sofrimento mental. Uma síndrome inevitavelmente coloca o foco da patologia no indivíduo e não nas circunstâncias sociais em que vivemos.
Já é bem estabelecida na literatura científica a relação entre o ambiente de trabalho e o sofrimento mental. Nossa sociedade frequentemente valoriza a produtividade desmedida como um marcador de realização profissional. Em uma sociedade dominada pela ideia de que está dentro do poder de cada indivíduo de se tornar o que quer que seja, mesmo apesar da existência de estruturas sociais profundas que impactam diretamente nessas realizações, há uma incessante valorização do trabalho às custas da saúde mental das pessoas.
Diversos sinais de alarme indicam um adoecimento associado ao trabalho, como irritabilidade, humor depressivo, crises de ansiedade, perda de motivação, negligência do autocuidado, sono de baixa qualidade, dores de cabeça frequentes, cansaço crônico. É fundamental que pacientes que apresentam esses sintomas procurem auxílio de profissionais de saúde mental. Muitos pacientes poderão apresentar diagnósticos psiquiátricos já bem estabelecidos na literatura médica, como transtorno depressivo maior ou transtorno de ansiedade generalizada, sem que haja necessidade de ser criada uma nova categoria diagnóstica, o que pode confundir ainda mais as pessoas.
Com a tecnologia e a globalização, observa-se o fenômeno de pessoas constantemente conectadas ao trabalho, sem descanso adequado e negligenciando diversas áreas de sua vida pessoal. Há uma sensação de sobrecarga constante, tornando difícil separar as fronteiras entre trabalho e vida pessoal. Características individuais também são uma peça importante nesse processo, e há uma maior tendência de adoecimento naqueles indivíduos com traços de perfeccionismo e maior tendência de dedicação patológica ao trabalho. A cultura organizacional das empresas também é algo a ser repensado, já que ambientes que favorecem uma maior competitividade e pressão por resultados são capazes de criar um local tóxico onde os indivíduos adoecem.
Mais importante do que criar uma nova categoria diagnóstica, é fundamental que as pessoas cuidem de sua saúde mental, cultivando hábitos de vida saudáveis, como reservar tempo para atividades de lazer, praticar exercícios físicos regularmente, seguir uma dieta saudável e garantir um sono adequado – bem como as empresas seguirem diretrizes que respeitem os limites dos indivíduos.
A OMS (Organização Mundial da Saúde) oferece em seu site oficial uma série de resumos e cartilhas que dão dicas para que as empresas cultivem um ambiente organizacional adequado à saúde mental daqueles que empregam – e seus estudos apontam inclusive para uma maior produtividade e resultados por parte das empresas que as adotam. Desta forma, precisaremos cada vez menos de novas categorias, podendo cuidar daquelas que já dão conta do sofrimento psíquico tão comum aos tempos que vivemos.
* Por Dr. Gustavo Bonini Castellana – CRM 117.124 l RQE 38.983
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