Sergio Moro é o mais novo mercador de ilusões do cenário político brasileiro
O discurso da moralidade, ainda que frágil na era das utopias rasteiras, sempre tocará o povo, sabendo-se que a autoridade moral dos virtuosos é o horizonte obrigatório para evitar que a barbárie domine completamente a política
A condição humana é repleta de paradoxos. Um deles tem roubado a cena no teatro da política nacional desde pelo menos os anos 60 do século XX: o discurso da virtude como antídoto para os vícios e desvarios que o exercício do poder traz à tona entre os homens. Política é produto humano e, como tal, está a léguas da mais pálida sombra da perfeição. Para que não reste dúvidas, recordemos dois fragmentos de Cristo, autoridade moral máxima.
Entre as provações de Jesus, há o episódio da subida a um monte muito alto sob condução do Diabo, que dali aponta ao filho de Deus todos os reinos do mundo e sua glória, dizendo: “Tudo isto te darei se, prostrado, me adorares” (Mateus 4:8). A resposta negativa não contentou o proponente. Daí que o diabo, sem ter podido vencer Deus encarnado, seguiu carreira fechando contrato com os homens mesmo. Outra passagem que reforça a distinção original entre moralidade e política (João 18:35,36) está na resposta de Cristo a Pilatos. “Que fizeste para ser entregue a mim pelos sacerdotes de tua nação”, indaga. Pretexto para a lição fundamental sobre a universalidade do cristianismo: “O meu reino não é deste mundo; (…) o meu reino não é daqui”.
A salvação não está na política. Mediar conflitos e formular soluções para disputas, controvérsias e abuso de toda sorte provêm do senso de justiça, conatural aos homens, assim como o impulso para a criação de problemas, a proliferação de controvérsias e a insistência em abusar do próximo. A política, na melhor das hipóteses, é a prática de evitar e reduzir a discórdia por mecanismos diversos, alguns dos quais funcionam melhor que outros. Insistir em maus mecanismos e inventar outros piores, ou propor a recuperação dos eficazes e seguros, quando caíram em desuso, está na origem da adesão a partidos, por exemplo. Aristóteles, que entendia de alma humana, percebia que um homem poderia fazer política de modo competente se educasse a alma para a virtude, especialmente a da justiça.
Num momento peculiar do Ocidente, a Igreja funcionou como poder moderador entre reinados diversos. A Cristandade medieval não foi a mistura da religião à política, mas a vida política aconselhada pela autoridade moral da religião. Porque política é assunto de homens, evidentemente será poluída de vícios. Não pode vir dela mesma o conselho, quando o vício de poderes em disputa se acirram, mas de uma autoridade separada e não subordinada a nenhum partido tomado, ou nenhum reino envolvido na disputa. Funcionava bem, até que dinastias articulam concentração de poder cada vez maior, originando o que se designa absolutismo, cuja ascensão se faz acompanhar da formação do estado moderno.
Estados nacionais se consolidam enquanto igreja atravessa crises internas, perdendo aos poucos sua autoridade moral diante de reis que buscam na própria autoridade a legitimidade absoluta. Um exemplo clássico de Estado suplantando o antigo papel moderador da Igreja é a Inglaterra de Henrique VIII, que funda a Igreja Anglicana, cujo pontífice máximo é o próprio… rei. Do século XVI por diante, a autoridade moral da igreja não mais é requisitada por reinos em disputa. Já no século XVII, surgem as utopias, tentativas de regular a explícita ausência da moralidade na política por meio de soluções… humanas.
Pegou, sobretudo do século XVIII para cá. A tal ponto que mobilizou todo o debate político do século XIX, esteve na origem dos delírios inimagináveis legados pelos Estados totalitários e atravessou o debate ao longo do século XX, culminando na defesa da ética na política como ingrediente de marketing obrigatório desde a redemocratização, aqui no Brasil. Eu não sei se Moro tem exata noção de que o discurso feito por ele na cerimônia de filiação do Podemos repete a fórmula da “ética na política” alardeada pelo PT nos anos 90; aproveitada pelos tucanos quando o PT vira situação e a imoralidade de seus governos acaba gritantemente exposta; absorvida por Bolsonaro em 2018, diante de um Brasil encantado pelo combate à impunidade da Operação Lava-Jato. É um discurso que sempre tocará o povo, uma vez que a autoridade moral dos capazes de virtude é horizonte obrigatório para evitar que a barbárie domine completamente a política. O problema é manter-se fiel à promessa, quando a rampa de Brasília engole as boas intenções dos virtuosos, que sentem a política como “cadeira elétrica”, ou saúda as más intenções dos viciados, que os acata com a mesma alegria que o demônio recebe os condenados à porta do inferno.
Eu não acredito que Sergio Moro saiba onde está se metendo. Hoje, ele me parece, consciente ou não, o mais novo mercador de ilusões do cenário político brasileiro. O apaixonado de utopias boçais surgidas para distorcer completamente o papel moderador que a moralidade, unicamente ela, pode exercer sobre a sede de poder humana, alimentada pelo orgulho, vaidade, gula, luxúria e demais pecados capitais. Os brasileiros mais argutos devem chegar à conclusão de que ter um presidente que acredita em Deus (ou seja, submete-se à autoridade moral máxima, em vez de exercê-la) parece melhor negócio.
*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.
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