Felipe Moura Brasil: Lula, Bolsonaro e o dever da vigilância
Previ em Os Pingos Nos Is que a estratégia de explorar o risco da volta do PT para encobrir equívocos e contradições da família do presidente, buscando unir o eleitorado cega e incondicionalmente em torno dele, seria turbinada após a soltura de Lula, vista de antemão por uma ala dos bolsonaristas como vantajosa do ponto de vista político.
(É a estratégia banalizada na internet pelo uso reiterado, diante de qualquer notícia ou análise incômoda, da expressão “senão o PT volta”.)
Mal Lula saiu da cadeia – em decorrência da decisão do STF que derrubou a prisão em segunda instância – e, conforme previsto, Jair Bolsonaro já tocou o berrante:
“Amantes da liberdade e do bem, somos a maioria. Não podemos cometer erros. Sem um norte e um comando, mesmo a melhor tropa, se torna num bando que atira para todos os lados, inclusive nos amigos. Não dê munição ao canalha, que momentaneamente está livre, mas carregado de culpa.”
O “canalha” a que o presidente se refere no Twitter é Lula. Resta saber quem são as demais figuras ocultas em sua postagem (descartando desde logo os ministros do Supremo, já que, em reunião de governo, antes do julgamento no plenário da Corte, Jair Bolsonaro “disse que nós não iríamos tomar posição em relação ao julgamento, que o governo não iria se manifestar”, como admitiu o ministro da Cidadania, Osmar Terra).
Por exemplo: “amantes da liberdade” de quem? De Lula, José Dirceu e Eduardo Azeredo? De um suspeito de rachadinha em gabinete da Alerj como Flávio Bolsonaro? Ou a de Dias Toffoli para executar o plano de soltar seu padrinho e demais condenados pela Lava Jato sem os obstáculos que a CPI da Lava Toga – boicotada pelos filhos Flávio (01) e Eduardo (03) – poderia impor? Perguntas retóricas, claro. O pai se refere à liberdade das pessoas “do bem” e inclui a si próprio nesta alegada “maioria”.
Para quem, no entanto, não é cego voluntário, nem dá apoio incondicional a político, muito menos se deixa intimidar por militância virtual, o problema é que Jair Bolsonaro endossou a decisão de Toffoli de suspender a investigação sobre o filho 01 e ainda nomeou André Mendonça para a AGU e Augusto Aras para a PGR, que – oh, coincidência! – defendem o inquérito ilegal aberto pelo presidente do STF e usado para censurar veículos de comunicação, intimidar críticos dos ministros e suspender apurações da Receita que poderiam atingir o próprio Toffoli e Gilmar Mendes.
“Se está previsto no regimento interno, a AGU tem de defender esse ato”, disse Mendonça, como se o artigo 43 do regimento, que só prevê a abertura de inquérito “ocorrendo infrações à lei penal na sede ou dependência do Tribunal”, pudesse ser estendido para ocorrências – indefinidas – fora do espaço físico do Supremo.
Na AGU, curiosamente, Mendonça já havia sido corregedor-geral, adjunto do Procurador-geral da União e diretor do Departamento de Patrimônio e Probidade, por convite – adivinhe de quem – de Toffoli(!), ex-advogado-geral indicado por Lula. Em parceria com Alexandre de Moraes, Mendonça ainda organizou um livro, lançado em 23 de outubro, em homenagem aos 10 anos de Toffoli como ministro do STF.
“Vida longa a Vossa Excelência, vida longa a essa Corte, por toda a importância que tem para mediar os conflitos da República”, reforçou Aras, ao prestar sua própria homenagem a Toffoli, na sessão de bajulação que se tornou a retomada do julgamento no Supremo sobre a prisão em segunda instância.
Para o PGR, que também extrapola o artigo 43 do regimento, “mostra-se adequado” que a atuação da polícia do STF “não se restrinja a um espaço físico e abranja a proteção da instituição como um todo e dos bens jurídicos com ela correlacionados”. Em outras palavras, mostrou-se “adequado” que Toffoli transgredisse a regra escrita, desde que o Supremo liberasse o acesso de Aras às investigações, como fez, depois, Moraes.
Contudo, os “erros” que não podem ser cometidos, de acordo com a postagem de Jair Bolsonaro, são exemplificados como os tiros dados “para todos os lados, inclusive nos amigos”, sem a devida obediência hierárquica a “um comando” da “tropa” – comando este (“um norte”!) que seria exercido por quem, senão pelo próprio presidente?
Jair Bolsonaro, na prática, cobra a união complacente em torno de si, para que ninguém dê “munição” a Lula – mesmo após o atual presidente, seus indicados para AGU e PGR, seus filhos e militantes terem municiado e blindado Toffoli, o autor do voto de desempate que resultou na soltura do “canalha”.
A militância bolsonarista já espalha nas redes sociais que a liberdade de Lula “fortalece ainda mais o presidente”, vai “reagregar a direita” e quem mais perde é “o centrismo”. Do ponto de vista do poder político, isto pode até acontecer, dada a falta de outras lideranças carismáticas em partidos, inclusive no campo verdadeiramente conservador. Mas não se dá passe livre nem salvo-conduto a políticos por pavor de seus adversários.
Como país e sociedade, o Brasil e o povo brasileiro não precisam de esquerda unida, nem centro unido, nem direita unida. Precisam, sim, da vigilância individual e da união de gente honesta e íntegra, que, sendo capaz de defender a verdade e a moralidade independentemente dos atores envolvidos, rejeita criminosos de qualquer espécie – sejam saqueadores de estatais ou beneficiários de rachadinha – e a blindagem deles.
Consentir com essa blindagem, ou silenciar diante dela, também é uma forma de cumplicidade. E cumplicidade não é comportamento digno de “amantes do bem”.
* Felipe Moura Brasil é diretor de Jornalismo da Jovem Pan.
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