Felipe Moura Brasil: Os abusos de Toffoli e Moraes
A entrevista de Dias Toffoli à Jovem Pan não deixou dúvidas: o presidente do STF nada mais tem para embasar seu inquérito sigiloso e sem objeto definido do que um artigo do regimento interno da Corte que só se aplicaria a casos de crimes cometidos dentro do espaço físico do Supremo, não a supostas fake news, ofensas e “ameaças gravíssimas, inclusive na deep web”, contra as quais genericamente Toffoli o aplica.
“Está previsto [sic] no regimento do Supremo Tribunal Federal a possibilidade desse inquérito”, disse sorrateiramente o presidente do STF, sem expressar o conteúdo do artigo 43 do regimento, que prevê, na verdade, o seguinte:
“Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro ministro.”
Repito: “na sede ou dependência do Tribunal”. Isto quer dizer, por exemplo, que, se o então procurador-geral da República Rodrigo Janot tivesse assassinado o ministro Gilmar Mendes na antessala do plenário, onde chegou a engatilhar sua arma legalmente portada, mas desistiu de cometer o crime por atuação da “mão de Deus”, conforme confessou, aí sim o presidente teria base no regimento para instaurar um inquérito.
De outro modo, sua abertura é uma ilegalidade cometida por Toffoli, dentro da qual outras ilegalidades vêm sendo cometidas, desde a censura à revista Crusoé até a ação de busca e apreensão em endereços de Janot em Brasília, determinada pelo ministro Alexandre de Moraes (a quem foi designada sem sorteio a relatoria do inquérito), após pedido de Gilmar Mendes por providências contra o ex-PGR.
“Não vejo vinculação entre o objetivo do inquérito e as medidas agora adotadas e não detenho mais prerrogativa de foro para ser investigado pelo STF”, disse Janot, alegando ainda que o fato narrado por ele “não constitui crime, muito menos notícia fraudulenta”.
O artigo 43 condiciona claramente a abertura do inquérito pelo presidente do Supremo ao envolvimento, em infração à lei penal cometida dentro do tribunal, de “autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição”. Como o ex-procurador-geral não tem mais foro privilegiado e, quando o tinha, por mais inaceitáveis que tenham sido a intenção ora confessada e a confissão mesma, não cometeu o crime de assassinato e nem sequer incorreu na tentativa de cometê-lo, a decisão de Moraes é manifestamente ilegal.
(Se Moraes justificar a aplicação do regimento considerando Gilmar, e não Janot, a autoridade sujeita à jurisdição do STF envolvida na infração à lei penal, também seria uma interpretação forçada, já que o foro privilegiado de ministros do Supremo existe para os casos de infrações penais comuns supostamente cometidas por eles, não para o caso de serem vítimas – que dirá de um crime que não ocorreu.)
Curiosamente, o artigo 27 da Lei de Abuso de Autoridade já sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro prevê “detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa” para quem “requisitar instauração ou instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa, em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa”. No caso em tela, registre-se, o procedimento investigatório de infração penal já estava ilegalmente aberto e foi usado em desfavor de Janot “à falta de qualquer indício da prática de crime”.
Questionado por Vera Magalhães se existe, para os ministros do Supremo, alguma instância capaz de reagir a seus eventuais abusos, Toffoli respondeu:
“Existe o controle exatamente do Senado da República através de um processo de impeachment. Mas aí tem que haver um fato determinado, tem que ter uma razão. Entrar com um processo de impeachment porque não gostou de uma decisão jurisdicional, isso não é cabível.”
Toffoli tenta fazer parecer que o pedido de impeachment apresentado pela deputada estadual Janaina Paschoal (PSL-SP) e pelos procuradores do grupo ‘MP Pró-Sociedade’, assim como o requerimento para criação da CPI da Lava Toga, apresentado pelos senadores do movimento ‘Muda, Senado’, foram baseados em mero desgosto, não em manifesta ilegalidade cometida por ele, cuja esposa ainda era alvo de apuração da Receita Federal suspensa por outra decisão de Moraes dentro do mesmo inquérito.
A escalada autoritária do Supremo, como qualquer outra, faz-se acompanhar da escalada do cinismo de ministros como Toffoli e Moraes, contra os quais o Senado só se cala por complacência de seu presidente, Davi Alcolumbre, e de senadores investigados como Flávio Bolsonaro, os petistas e suas linhas auxiliares, além das militâncias à direita e à esquerda que os protegem, evitando o risco de retaliação de Toffoli.
Cumplicidade e covardia, tradicionalmente, custam muito caro ao Brasil.
* Felipe Moura Brasil é diretor de Jornalismo da Jovem Pan
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