Nova lei de licitações frustra ao prestigiar o controle em vez da eficiência
Excesso de regulação elimina a autonomia da empresa contratada, privilegia administração pública e mantém ambiente da contratação pública bastante instável e inseguro
Foi publicada, nas últimas semanas, a nova Lei Geral de Licitações e contratos administrativos (Lei 14.1333/2021). Aguardada há pelo menos 25 anos, essa atualização tem produzido mais frustração do que alívio. Apesar de trazer alguns aperfeiçoamentos, ela padece de uma técnica legislativa frágil, além de reproduzir o mesmo modelo burocrático e autoritário de contratações que temos tido historicamente. Trata-se de uma lei que, lamentavelmente, já nasce defasada. O descontentamento histórico com o sistema de licitações e contratos tem duas causas principais: 1) o caráter excessivamente burocrático das licitações; e 2) a acentuada assimetria na relação contratual entre as administrações públicas e os contratados privados. Essa assimetria se retrata num regime de contratos repleto de prerrogativas e privilégios para as administrações, mas deficitário na demarcação de direitos dos contratados.
O viés burocrático da nova lei começa refletido no extenso número de normas: são 194 artigos que tratam detalhadamente de todas as etapas do processo da contratação e da execução contratual. Além disso, dezenas de temas são remetidas à regulamentação infralegal. Há um excesso de regulação, que busca a roteirização minuciosa de todos os passos do administrador, eliminando-se sua autonomia e discricionariedade para decidir sobre os diversos aspectos da contratação. O tratamento dos crimes também ganhou alguns novos tipos e penas muito mais severas, incorporando novas normas ao Código Penal. É perceptível que o legislador prestigiou um modelo de licitações e contratos de controle maximalista e de cariz punitivista.
O problema é que há um tradeoff entre o incremento do controle e a redução das ineficiências . Quanto maior a rigidez e a densidade burocrática, maiores são os custos de governança. E quanto mais opressor for o ambiente de contratações, maiores serão os riscos e o custos de participação. O perfil excessivamente burocrático da licitação tem imposto, historicamente, um altíssimo custo para as contratações públicas no Brasil. As estruturas de contratações são responsáveis por manipular um pedaço relevante do orçamento público. A depender de seu rigor burocrático, os custos de licitar determinado objeto podem onerar excessivamente as aquisições das administrações públicas, além de acarretar atrasos. Não é despropositado afirmar que essa morosidade tem reflexos diretos no funcionamento da economia, uma vez que os governos são os principais consumidores dos bens e serviços produzidos no país.
Além disso, um aparato excessivamente burocrático pode não ser eficaz para eliminar desvios. A nossa experiência histórica com a Lei 8.666/93 — considerada uma legislação de perfil burocrático — bem o demonstra. Outro problema crítico do nosso regime é a cultuada assimetria na relação público-privado. Por um lado, contempla um extenso rol de prerrogativas contratuais das administrações púbicas. Estas detêm o poder de alterar, rescindir e anular unilateralmente os contratos, suspender a sua execução, aplicar sanções e, inclusive, atrasar os pagamentos devidos ao contratado por até 90 dias (Lei 8.666/93) sem que o contratado possa suspender a execução das suas obrigações (a nova lei reduziu o prazo para dois meses, mas ainda mantém o injustificado e esdrúxulo privilégio das administrações públicas atrasarem pagamentos). A legislação pouco se preocupa em assegurar direitos do contratado. Dado o contexto prático das contratações públicas no país, marcado por um altíssimo nível de inadimplência, tem sido extremamente desafiador para as empresas buscarem seus direitos. Tal decorre, em boa medida, da falta de uma demarcação de seus direitos pela legislação. Não se ignore que esse déficit de regulação tem tornado o ambiente da contratação pública bastante instável e inseguro, ampliando os riscos — e, portanto, os custos – de quem firma um contrato com a administração.
Todos estes problemas críticos não foram remediados com a nova lei. Alguns foram mantidos, outros até agravados. Era tempo de construir um regime de contratações orientado pelas boas práticas do mercado privado e que pressupusesse uma relação verdadeiramente contratual e simétrica entre administração pública e contratado privado. É lamentável que, depois de tanto tempo aguardando a modernização do regime de licitações e contratos, tenhamos de nos contentar com uma lei de espírito velho e obsoleta pelo seu caráter burocrático, punitivista e autoritário. Resta-nos torcer para que venha logo uma próxima reforma da legislação. Afinal, essa lei — como já referi em outro artigo — já nasceu velha.
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